sábado, 22 de março de 2014

O retorno da vítima: adeus, pedófilo!


Visco das entranhas espalhava-se pelo chão, numa mistura com sangue, fezes e outras substâncias típicas do aparelho digestivo. Tal como uma cena grotesca de arte, enrolou-se um pedaço do intestino em redor do pescoço do cadáver, como se aquilo fosse uma gravata da mais recente moda. Era um espetáculo jamais visto antes. A parte inferior da boca descolou-se do crânio, abrindo a boca até a metade do pescoço, num sorriso macabro, sombrio e tenebroso.
            Um filete de voz ainda escapulia pela garganta do sujeito, demonstrando que, apesar de todo o aparato sofisticado de tortura, o desgraçado ainda estava vivo. Sem os dois globos oculares, que foram ocupados estrategicamente por bolinhas de gude, e sem a parte inferior do torso, cuja mutilação deixava escorrer o restante das vísceras pelo ambiente. E o odor se tornou fétido e imprestável.
            Aquela carcaça inútil ainda resistia, porém, não se sabia que poderia ter tamanha vontade de viver. Como isso poderia se dar, já que não teria condições reais de viver normalmente, sem nada que lhe impedisse de usufruir das delícias que outrora provou.
            Mesmo que nada mais lhe restasse, a mente praticamente moribunda do quase cadáver relampejava e insistia em manter e a enviar alguns sinais elétricos para as sinapses, apesar do prelúdio da morte certa e imediata.
            Um crime com status estético, tal como aquele em que se seu caráter artístico àqueles corpos de prisioneiros chineses embalsamados e fatiados, expostos como se fossem obras de arte.
            Jamais tinha visto algo parecido na minha parca existência. Tudo refletia o que mais de horrendo já havia percorrido a superfície terrestre. Um espetáculo além do macabro, que ficaria para sempre na minha memória.
            Nunca mais conseguiria dormir sem antes sorver alguns goles de bebida alcoólica para tentar apagar, da mente, aquela degradação que me invadia constantemente os domínios do real e do imaginário.
            Tinha que me livrar daquilo, pois me lembrava outra faceta do meu ser que nunca enfrentei antes. O lado obscuro da alma, que abraça a loucura e os demônios encalacrados, insurgia-se, de tempos em tempos, para dar vazão ao ódio acumulado ao longo dos tempos.
            Aquela obra de arte hedionda tinha um autor peculiar que custei a reconhecer. Mas ao reconhecê-lo, tive sobressaltos de decepção. O ser nauseabundo e fétido era da minha autoria. Eu, artista apocalíptico que esporrava a mais profunda raiva com talhadeiras, furadeiras, serras e outros instrumentos típicos de carpintaria em matéria orgânica que insistia em continuar viva.
            Dificilmente saberei dizer com todas as palavras os sentimentos que se apoderaram de mim quando selecionei a minha presa e a entalhei com requintes de sensibilidade barroca.


            Por muito tempo, aprendi a controlar as emoções, a ficar calado quando contrariado, numa frieza que daria inveja ao mais articulado dos espiões. Mas isso de nada serviu quando não consegui mais segurar a besta interior. Não tenho mais possibilidade de saber se terei habilidade para controlá-la, no intuito de se evitar outros massacres.
            A vida de seres como o que acabo por destruir é totalmente perecível e descartável, mesmo com relação a um suíno. Pedófilos não são pessoas, e sequer podem ser considerados humanos. Não há parâmetros para suportar animais desse porte que destroem de dentro para fora a infância que deveria ser sagrada a toda e qualquer criança.
            Em todos seus crimes, o sacerdote seviciava os pequeninos com um crucifixo preto de madeira, arrebentando-lhes as aberturas do ânus e da vagina das meninas e do ânus e do pênis dos meninos. Os poucos que sobreviviam depois de horas de brutalidade eram submetidos a cirurgias de reconstrução, porém, não teriam mais possibilidade de controle do despejo dos seus excrementos e outras secreções.
            Ele filmava todas as sessões de “catecismo”, narrando detalhadamente cada uma das atrocidades que cometia e ignorava, por completo, os clamores das vítimas pela piedade e pela intervenção divina. Penetrava-as por todos seus orifícios, lambuzando-os com seu sêmen. Gentilmente, após realizados os atos, banhava seus corpos em água benta, no intuito de purificar as almas dos ingênuos e perdidos pecadores.
            Consegui sobreviver, padre. Mesmo com meus órgãos baixos dilacerados e a dignidade corrompida, Deus me deixou vivo para que eu pudesse me dar conta da minha verdadeira missão nesta terra profana. Naquele dia, padre, o senhor e seu crucifixo me levaram ao inferno e não mais retornei. De acordo com a doutrina, mesmo sendo vítima, tornei-me um pecador.
            Sim, padre. Igual ao senhor, também sou um pecador. Porém, um pecador contra minha vontade. Lembra-se quando eu lhe ajudava nos preparativos da missa e todos meus amigos do orfanato sentiam orgulho? Poucos sabiam, padre, ou queriam não acreditar, que naquela minha dedicação, havia grilhões em minha alma que me aprisionavam diretamente ao senhor.
            Inúmeras vezes, padre, o senhor me seviciou com as garrafas do vinho com que celebrava a missa, mastigava as óstias e me cuspia dentro do intestino, como se eu fosse um peru sendo recheado para a ceia natalina. Não percebia meu choro calado e as lágrimas secas que encharcavam o ambiente.
            O senhor me tornou servo do demônio, padre. Num lugar onde esperava salvação, como outros garotos miseráveis do meu bairro, o senhor me destruiu no primeiro momento em que me forçou suas carícias. Em outra paróquia, foi o digno defensor da virtude e da castidade. Mas aquela era uma paróquia de ricos, senhor. Padre, o senhor violou justamente as crianças depauperadas de dinheiro e de afeto. Aquelas que mais queriam o seu puro amor.
            Não que haja diferenças morais por se nascer rico ou pobre. Juízos morais não se proferem com base em propriedade ou posse de bens materiais. Porém, éramos os que mais necessitavam da sua proteção, pois nas nossas casas, escolas e outros recintos sociais estávamos sujeitos a sermos violados. E não na casa do nosso Senhor.
            Na sua chácara de final de semana, padre, o senhor passou um pouco dos limites e estraçalhou as minhas carnes. Deixou-me junto ao córrego carregado de esgoto para, simplesmente, morrer, totalmente lambuzado com suas secreções. Não parecia que ia sobreviver, padre. Mas a cúpula da ordem já estava de olho no senhor, acompanhando os seus passos, coletando provas, para que o Sumo Pontífice firmasse sua convicção com certeza.
            Todos os membros da força tarefa da ordem que deveriam lhe capturar se compadeceram diante dos meus restos vivos e começaram me acudir, para me tentar reanimar, enquanto o senhor, padre, fugia como um anjo caído se apavora diante da luz do Sol.
Morri naquele dia por sua obra, padre. Renasci das cinzas junto à ordem, que não poupou esforços para reconstruir cirurgicamente meu corpo. Não deveria voltar a andar, falar, ler, ouvir ou escrever. Por isso, a ordem fez crer, assim como eu, padre, que minha sobrevida foi um milagre.
Fui rebatizado. Lembrei-me do senhor, padre, que me fez o primeiro batismo, a primeira comunhão e a crisma. Precisava, contudo, ver-me redefinido, junto com a fé que o senhor me ensinou, mas que o senhor mesmo traiu. Meu corpo é uma aberração, um misto de músculos, ossos e aparatos mecânicos, sem os quais não poderia sequer respirar. Seu estrago em meu corpo e meu espírito foram devastadores, padre. Isso me queima até hoje.
Porém, o fogo que o senhor ateou no meu espírito, padre, é mais incandescente e doloroso que toda fustigação a que me sujeitou. A remoção cirúrgica das minhas partes estraçalhadas, da minha masculinidade e de outras partes vitais, padre, me arde menos que a decepção que o senhor me causou e aos outros inocentes.
Os anos de recuperação e de fisioterapia, além do treinamento de soldado da fé, padre, em vez de me auxiliarem a recuperar a fé no Senhor, Nosso Deus, me alimentaram o ódio e o desejo de vingança contra a sua pessoa. Deram-me a extrema unção quando me encontraram no córrego de esgoto em que me deixou para morrer, padre. Mas algo brilhou no fundo do meu ser, algo que não me deixou esmorecer, de forma alguma. Aquela extrema unção tornou-se algo que me fez viver, sentir-me com um motivo de perseverar diante de toda aquela adversidade.
Sobrevivi e fui reconstruído pela ordem, padre. Porém, creio que ainda estou morto, tal como o senhor me havia quase deixado. As próteses metálicas, com funções também beligerantes, são tão frias quanto aquilo que um dia foi o coração de um menino cheio de expectativas com o futuro.
            Não vejo esperanças num mundo que mascara esse tipo de atividade insensata e insana, muito menos de fiéis que acobertam os crimes de um sacerdote, que usa da fé e da confiança para atraiçoar aqueles que deveria proteger. Rezar e idolatrar a divindade e se dizer pregador da sua palavra para milhares de pessoas ao longo dos anos, com atividades secretas com algumas delas, selecionadas especialmente para outros fins, assemelha-se a um pastor que sevicia as crias do rebanho, sem que haja possibilidade de reação.
            A decepção é insuportável. Nossa ordem sempre primou pela aplicação correta da palavra divina, sem que houvesse aberrações ou distorções contra os mais fracos, que não têm possibilidade de se defender. De um lado a cruz e, do outro, a espada para fazer valer os desígnios de Deus numa terra infestada pelas intenções e ações malévolas.
            Certamente, a espada pode ser substituída por qualquer outro tipo de armamento, até mesmo por aqueles que são improvisados, mas que são extremamente letais se empregados por profissionais experientes contra qualquer tipo de ser vivo.
            A arte de matar parece contradizer o mandamento cristão de preservar, a qualquer custo, a vida. No entanto, o mundo não é preto e branco, com fronteiras bem definidas. No discurso religioso, isso é possível, entretanto, no mundo real, tudo é pincelado em tons cinzentos, sem que haja distinção nítida entre o que é certo e o que é errado.
            Para combater os que violam o ordenamento social, não bastam somente boas intenções. Há necessidade de emprego de força, ou mesmo passar por cima dos princípios que, outrora, juramos defender. Ficamos encarregados de limpar a terra com nossos atos concretos, enquanto os sacerdotes e os fiéis se encarregam das orações.
            Oficialmente, não existimos. Oficialmente, seremos execrados se formos pegos. E, sem dúvida, abandonados por nossos superiores e por nossos comuns. Apesar de desempenharmos nossas funções com propriedade, o anonimato é essencial para a existência da ordem.
            Não há liberdade de expressão nesse âmbito, muito menos de solidariedade. Aprendemos a matar, um ofício solitário e sensível, com a trilha sonora das orações e dos cânticos sagrados. O assassinato justificado, por assim se dizer, de pessoas que se tornaram indesejáveis perante o mundo, mas que as autoridades religiosas, políticas e econômicas não têm coragem de se livrar delas.
            Somos nós que fazemos o trabalho sujo que mancha de sangue nossas almas para que as dos demais permaneçam imaculadas à espera da salvação prometida nos templos. Os cavaleiros devem ficar ocultos e exclusivos aos desígnios da ordem, tal como androides sem convicção, além de cumprir exemplarmente aquilo que lhes fora designado.
            Nascemos mortos e sabemos de antemão que seremos amaldiçoados por tudo aquilo que fizemos por nossa passagem terrena. Iremos direto para o inferno. Um paradoxo, já que lutamos para fazer valer os mandamentos de Deus, embora, na verdade, utilizemos o ferramental do demônio.
             O senhor, padre, pensa que seu suplício acabou? Bang, bang. Dois tiros de misericórdia bem no meio da sua testa, padre. A misericórdia que nunca teve com os outrora inocentes. No inferno, ao nos encontrarmos novamente, terá mais. Aguarde-me, padre. Ainda estou reencarnado do inferno. E um dia retornarei ao inferno junto ao senhor, no qual serei o inquisidor, o defensor, o magistrado e o executor da sentença. Minha alma já foi perdida por sua obra padre. Deus que, se puder, me perdoe, pois eu não mais consigo perdoar, muito menos amar. Tornei-me o pior dos assassinos, padre, para que o senhor não pudesse mais pecar da maneira como pecou comigo.

            - Bang. É o estampido seco do tiro bem no meio da sua testa. São os últimos sons que ouviu, padre. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.