sexta-feira, 30 de julho de 2010

Devido processo legal aplicado ao jornalismo


O Direito Processual Penal contemporâneo alicerça-se em princípios consolidados na Constituição Federal de 1988 no intuito de se evitar a imposição de arbitrariedades por parte de quaisquer que sejam os controladores do aparato estatal. Os princípios presentes no ordenamento jurídico, mormente no constitucional, servem como guias de hermenêutica, de racionalidade e de atuação das partes e do Estado-Juiz no processo. Nesse arcabouço, destacam-se o princípio do devido processo legal, o princípio do contraditório e o da ampla defesa, que podem ser aplicados à atividade jornalística, contribuindo para a elaboração de parâmetros de racionalidade que auxiliem no desempenho ético da imprensa no cumprimento do seu papel de guardião da democracia contemporânea. A imprensa livre é necessária à democracia. Porém, não se trata de uma liberdade ilimitada e irresponsável.
De acordo com o princípio do devido processo legal, ninguém pode ser processado por um esquema que não seja previamente estabelecido. Ou seja, as normas em que se desenrolam as atividades persecutória e judiciária do Estado e a de defesa do acusado não podem extrapolar aquilo que está legalmente cominado.
Por princípio da ampla defesa entende-se, de um modo geral, que o acusado deve ter a chance de se explicar, no processo penal, de todos os modos possíveis e legalmente previstos, mesmo que seja notoriamente culpado de um fato que lhe fora imputado. A exceção, nesses casos, seria o da revelia, no qual o réu não se apresenta para se defender de um fato considerado criminoso a quem lhe é apontada a autoria.
O princípio do contraditório seria o que se diz no jargão jornalístico: sempre ouvir a outra parte. Trata-se de não somente ouvir, mas de dar efetividade de se constar no processo penal as versões concernentes a um fato, tanto por parte de quem acusa, como por parte de quem se defende.
A imprensa num País republicano e democrático é livre, porém, não acima da Lei, nem superior à dignidade inerente a todas as pessoas. Portanto, não pode agir conforme ao bel prazer dos jornalistas. Há de se elaborar um método que forneça ao operador noticioso um parâmetro de racionalidade que resguarde as pessoas de eventuais abusos cometidos no exercício da profissão jornalística.
Seria interessante lançar parâmetros de racionalidade, para o jornalista, baseados nos princípios do processo penal constitucional, especialmente os acima citados, no intuito de fornecer maior segurança no fórum da opinião pública tal como se verifica, em tese, nos fóruns onde atuam os operadores do Direito.
Obviamente, não há como se explorar a aplicação de todos os princípios do processo penal constitucional como modelo de racionalidade da atuação jornalística. Portanto, num primeiro momento, há de se falar mais com relação ao princípio do devido processo legal, ao princípio do contraditório e ao princípio da ampla defesa.
Esses três princípios são basilares no processo penal e, de certa maneira, promovem um tipo de justiça processualmente válida. Quer dizer: se houver persecução penal, que seja dentro de determinados limites, com normas estabelecidas anteriormente e segundo critérios que garantam ambas as partes opinarem em grau de paridade no processo e de modo a proporcionar que o acusado sempre possa se defender.





Esse modelo pode ser aplicado na atividade jornalística, principalmente para evitar abusos e arbitrariedades por parte de quem está na imprensa. Trata-se de oferecer parâmetros de racionalidade de atuação para o jornalista não ser guiado pelas suas paixões pessoais ou por tendências que nem sempre condizem com o interesse público. Afinal, nem sempre o que o jornalista publica coincide necessariamente com o interesse público e nem sempre o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado pode justificar o solapamento moral das pessoas, mesmo as já condenadas judicialmente.
A atividade jornalística necessita de uma discussão teórica que induza a resultados práticos. Nada mais prático que realizar associações com uma área do conhecimento como o Direito, que pode contribuir através da adaptação de princípios do processo penal constitucional – e de exemplos cotidianos – para a melhoria qualitativa da imprensa.
Lança-se, portanto, a preocupação em demonstrar que se podem aplicar o princípio do devido processo legal, o princípio da ampla defesa e o princípio do contraditório, oriundos do processo penal constitucional, à atividade jornalística, contribuindo para a discussão teórica para se encontrar parâmetros de racionalidade no intuito de colaborar com aspectos práticos da deontologia do jornalismo, concluindo que a liberdade de imprensa não pode ser ilimitada. Afinal, existem limites para a supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
O devido processo legal pode ser utilizado como parâmetro de racionalidade na elaboração de rotinas de procedimento na atividade jornalística, desde a apuração, redação e edição de uma matéria. Por sua vez, o princípio do contraditório é vital para conduzir à imparcialidade na elaboração de uma matéria jornalística, assim como é essencial para o desenvolvimento justo de um processo penal. E mais: o princípio da ampla defesa não é simplesmente ouvir a outra parte. É garantir realmente – ou processualmente, como no processo penal – que os acusados tenham efetivamente como se defenderem do que lhes é imputado.
Muito das aulas de legislação e ética no jornalismo se resume a discussões teóricas, devaneios do senso comum ou à leitura do Código de Ética dos Jornalistas Profissionais Brasileiros. O olhar do jurista poderia acrescentar maior qualidade no cotidiano dos profissionais de imprensa. Não basta ouvir o outro lado, é preciso muito mais, pois em nome da liberdade de imprensa, podem ser cometidas atrocidades de difícil reparação. O cuidado dos jornalistas poderia, num primeiro momento, ter como modelo paralelo a atividade jurisdicional encontrada no Direito Processual Penal, para se evitar divulgações levianas e linchamentos morais.


Artigo originalmente publicado no jornal Cruzeiro do Sul, página A-2, de 30 de julho de 2010. URL: http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=44&id=327719


terça-feira, 20 de julho de 2010

"Schadenfreude": ser feliz é curtir a infelicidade do outro



Há uma palavra em alemão denominada “Schadenfreude”. Talvez não exista uma expressão em português para traduzi-la fielmente. Numa tradução aproximada, significa “sentir-se feliz com a infelicidade alheia” (Schaden – dano; Freude – alegria). Quem não sentiu uma pontadinha de alegria, na Copa do Mundo de Futebol de 2010, quando a seleção da Argentina tomou uma goleada de 4 a zero da Alemanha? O mesmo ocorreu quando a Holanda ganhou por uma virada de 2 a 1 do Brasil.
Os olhares cínicos e as risadinhas amarelas no canto da boca, com suspiros de satisfação quando o outro se ferra, podem demonstrar a “Schadenfreude” com uma certa tipicidade. Quem sabe, tal sentimento reflita a verdadeira natureza humana, que se regojiza aos deleites diante da desgraça dos outros. Aliás, esse não é o segredo de sucesso das "pegadinhas" e outras "trapalhadas acidentais" veiculadas, principalmente, nos programas televisivos de domingo?
Sem as máscaras da moral cristã, se revelam os desejos destrutivos e o egoísmo extremado do ser humano. E também se dá vazão à hipocrisia. Quando se coloca uma pessoa no centro das atenções, todas suas ações e atitudes são analisadas como se vistas por um microscópio. Isto é, qualquer coisa – por mais normal que faça e que também a maioria das pessoas faz – é motivo de recriminação.



Neste caso, a “Schadenfreude” se dá pelo fato de o sujeito em questão ser descoberto e exposto ao público, enquanto os outros - que, provavelmente, fazem a mesma coisa - permanecem ocultos. Anseia-se destruir o outro quem sabe pelo fato de o mesmo lhe ser semelhante, no intuito de se tentar apagar aquela faceta interior que ninguém quer ver.
Afinal, ao se olhar no espelho nem sempre se gosta do reflexo, principalmente, quando mostra quem realmente se é. E ninguém aprecia ver sua imagem desnuda, com todas suas imperfeições. É melhor ver as imperfeições – mesmo as suas – nos outros.
Eis, pois, a “Schadenfreude”. O gozo em flagrar a corrupção alheia, já que a sua própria escapa impune. Corruptos e calhordas são os outros. É mais fácil viver assim: olhar a hipocrisia no outro, em vez de si mesmo, e clamar para que o outro tenha vergonha na cara, em vez de ter vergonha na cara por si mesmo.
Errados sempre são os outros. Dessa maneira, é bem melhor que olhar a si mesmo diante do espelho e morrer de decepção.
Publicado também no "Direto da Redação com Leila Cordeiro e Eliakim Araújo", URL: http://www.diretodaredacao.com/noticia/ser-feliz-e-gozar-com-a-desgraca-alheia