terça-feira, 30 de março de 2010

O devido processo legal substantivo no direito penal sob o prisma das teorias de John Rawls e de Jürgen Habermas



Prof. Ms. Roger Moko Yabiku




O presente trabalho versa a respeito do princípio do devido processo legal substantivo sob uma perspectiva das teorias de John Rawls (1921-2002) e de Jürgen Habermas (1929 - ), no intuito de demonstrar que o Direito, especialmente o Direito Penal, não pode visto e aplicado de modo meramente formal, dissociado da realidade material, como se os seres humanos fossem sujeitos do "puro dever ser". O princípio do devido processo legal substantivo não é somente um limite à arbitrariedade do Executivo e do Judiciário, mas também do Legislativo. Isto é, a faceta substantiva do devido processo legal é uma garantia do ser humano contra Leis irracionais que mais fustigam do que protegem aqueles que essas mesmas Leis deveriam proteger. Assim, como a própria jurisprudência brasileira [01] reconhece, o devido processo legal não possui uma faceta meramente procedimental, mas também material, constituindo verdadeira garantia dos Direitos Fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito.









Leia o texto completo na revista jurídica Jus Navigandi: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=14592

domingo, 28 de março de 2010

Interposição concomitante de 'habeas corpus' e de apelação. Aplicação de Amartya Sen ao Processo Penal



O "habeas corpus' deve corrigir a injustiça do encarceramento daquele que não tiver suprido o elemento da liberdade substantiva, a defesa técnica. No caso, a doutrina do economista Amartya Sen (ver foto) é aplicável ao Direito Processual Penal.



Texto de minha autoria na revista jurídica "Jus Navigandi". Leia mais: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=14591

sábado, 27 de março de 2010

A dialética da secularização: debate entre Jürgen Habermas e Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI)



Fé e razão se misturaram durante o fim da Antiguidade e começo da Idade Média. Essa mescla entre cristianismo e Filosofia ajudou a levar a boa nova ao continente europeu, e, praticamente, moldou o jeito de se pensar no Ocidente. A Filosofia era subordinada à Teologia. Porém, com o advento do Renascimento e da modernidade, a Filosofia e a razão se libertaram paulatinamente da Teologia e da Fé.

A razão retomou seu papel central nas discussões intelectualizadas do mundo Ocidental e a fé ficou relegada ao âmbito particular, sem tanta pretensão secular. No entanto, os debates entre filósofos e teólogos permaneceu. Mas, ao contrário dos xingamentos e troca de farpas que se esperava no senso comum, tratam-se de discussões qualificadas, de alto nível intelectual e de elegância soberba.

Abaixo, trechos da "troca de idéias" entre o filósofo alemão Jürgen Habermas, herdeiro da Escola de Frankfturt, e o então Cardeal Joseph Ratzinger (atual Papa Bento XVI), publicados originalmente no Brasil pelo jornal Folha de S. Paulo. Posteriormente, o texto integral foi editado num livro denominado "A dialética da secularização".




Folha de São Paulo

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São Paulo, domingo, 24 de abril de 2005

O cisma do século 21
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2404200506.htm

REUNIDOS NA ACADEMIA CATÓLICA DA BAVIERA, EM MUNIQUE, E SOB O IMPACTO DA GUERRA DO IRAQUE, O PENSADOR JÜRGEN HABERMAS E O CARDEAL JOSEPH RATZINGER, ATUAL PAPA BENTO 16, ANALISAM A NOVA ORDEM POLÍTICA E CULTURAL DO OCIDENTE

DA REDAÇÃO

Em 19 de janeiro de 2004, um inusitado debate reuniu, de um lado, um dos pensadores mais influentes da atualidade e, de outro, um teólogo de peso, que, pouco mais de um ano depois, se tornaria o sucessor de João Paulo 2º.
O encontro do filósofo Jürgen Habermas e do cardeal Joseph Ratzinger, atual papa Bento 16, ocorreu na Academia Católica da Baviera, em Munique, no qual se discutiram "as bases pré-políticas e morais do Estado democrático".
Saudado como o confronto entre o filósofo da "iluminação" e o cardeal do dogmatismo, a discussão também tratou de temas como a complementaridade e a oposição entre razão e fé, a crítica ao capitalismo globalizado, a necessidade de uma base moral nas sociedades pluralistas e midiáticas. Ratzinger, especialmente, tratou da interculturalidade, prenunciando uma das possíveis linhas de atuação de seu papado.
Numa época em que a invasão do Iraque pelos EUA estava no centro das discussões, ambos debruçaram-se sobre a necessidade de o poder ser submetido a um direito comum.
O debate (de que a Folha reproduz trechos a seguir) tem um formato pouco usual, em que Habermas, herdeiro da Escola de Frankfurt (que reuniu nomes como Adorno e Horkheimer) tece suas considerações sobre os temas acima, enquanto Ratzinger, por sua vez, comenta e faz reparos às observações do filósofo.

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"Os secularizados não devem negar potencial de verdade a visões de mundo religiosas"
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2404200507.htm

por Jürgen Habermas

O tema proposto para nossa discussão evoca uma pergunta que o historiador Ernst Wolfgang Böckenförde apresentou nos anos 60 por meio da seguinte fórmula concisa: o Estado liberal e secularizado consome pressupostos normativos que ele mesmo não pode garantir?
Nisso se expressa a incerteza de que o Estado constitucional democrático possa renovar os pressupostos da sua existência a partir de seus próprios recursos, assim como a suspeita de que ele está voltado para tradições autóctones quanto a concepções de mundo ou religiosas, em todo caso, de modo coletivamente obrigatório, éticas. Isso colocaria o Estado, obrigado a uma neutralidade quanto a concepções de mundo, em dificuldade em vista do "fato do pluralismo". Entretanto somente essa inferência não fala contra a própria suposição.

Em primeiro lugar, gostaria de especificar o problema de acordo com dois pontos de vista. Sob o ponto de vista cognitivo, a dúvida relaciona-se à questão se um domínio político, após uma total positivação do direito, ainda é acessível a uma justificação secular quer dizer, não religiosa ou pós-metafísica (1).
Ainda que se conceda uma tal legitimação, subsiste, quanto ao ponto de vista motivacional, a dúvida se uma coletividade pluralista quanto a concepções de mundo pode ser estabilizada de um modo normativo, portanto para além de um simples modus vivendi, pela subordinação a um entendimento de fundo, na melhor das hipóteses formal, limitado a procedimentos e princípios (2).
Mesmo que se possa desmanchar tal dúvida, permanece o fato de que ordenamentos liberais se encontram direcionados para a solidariedade de seus cidadãos, e suas fontes poderiam, em conseqüência de uma secularização "descarrilada", fracassar completamente. Esse diagnóstico não pode ser recusado, mas não precisa ser entendido como se os cultos entre os defensores da religião estivessem, a partir disso, criando, até certo ponto, uma mais-valia (3).
Em vez disso, vou sugerir que se entenda a secularização cultural e social como um processo didático duplo, que obriga as tradições do Iluminismo assim como as doutrinas religiosas a uma reflexão acerca de suas respectivas fronteiras (4).
Em vista de sociedades pós-seculares, coloca-se a questão acerca de que atitudes cognitivas e quais expectativas normativas o Estado liberal precisa atribuir aos seus cidadãos crentes e descrentes no convívio entre si (5).

1. O liberalismo político (que eu defendo sob a forma especial de um republicanismo kantiano) é entendido como uma justificação não-religiosa e pós-metafísica dos fundamentos normativos do Estado constitucional democrático.
Essa teoria encontra-se na tradição de um direito racional, que prescinde das suposições fortemente cosmológicas ou soteriológicas das doutrinas do direito natural clássicas e religiosas.
A história da teologia cristã na Idade Média, especialmente a escolástica tardia espanhola, pertence naturalmente à genealogia dos direitos humanos. Mas os fundamentos da legitimação da violência neutra quanto a concepções de mundo do Estado têm sua origem, no final das contas, nas fontes profanas próprias da filosofia dos séculos 17 e 18. Somente muito mais tarde, a teologia e a igreja dominaram as exigências espirituais do Estado constitucional revolucionário. No século 20, a fundamentação pós-kantiana dos princípios constitucionais liberais ocupou-se menos com os vestígios do direito natural objetivo (como da ética material de valores) do que com formas históricas e empíricas de crítica. A tarefa central é a de esclarecer por que o processo democrático vale como um procedimento de uma normatização legítima: enquanto ele preencher as condições de uma formação de opiniões e vontades inclusiva e discursiva, ele fundamenta uma suposição da aceitabilidade racional das conseqüências; e por que a democracia e os direitos do homem, no processo de elaboração de uma Constituição, delimitam-se mutuamente a partir de uma mesma fonte: a institucionalização jurídica do procedimento de normatização democrática exige a garantia concomitante dos direitos fundamentais políticos e liberais.
O ponto de referência dessa estratégia de justificação é a Constituição, que os cidadãos associados dão para si mesmos, e não a domesticação de uma violência do Estado subsistente, pois essa precisa primeiro ser gerada nos caminhos que perfazem a entrega da Constituição democrática. Uma violência de Estado "constitutiva" (e não apenas domada constitucionalmente) é legítima até o seu âmago. Ao passo que o positivismo da vontade do Estado -com raízes no período imperial- na teoria do direito de Estado alemã deixou um esconderijo para uma substância ética "do Estado" ou "do político" livre do direito, não há, no Estado constitucional, um sujeito dominador que se nutra de uma substância anterior ao direito.
À luz dessa herança problemática, a pergunta de Böckenförde foi entendida como se uma ordem constitucional completamente positivada tivesse necessidade da religião ou de algum outro "poder de contenção" para a segurança cognitiva de seus fundamentos de validade. De acordo com tal leitura, a reivindicação de validade do direito positivo deve estar dirigida para uma fundamentação nas convicções pré-políticas e éticas de comunidades religiosas ou nacionais, pois uma tal ordem jurídica não pode ser somente legitimada, auto-referencialmente, a partir de procedimentos jurídicos gerados democraticamente.
Mas, contra uma compreensão do Estado constitucional baseada no direito hegeliano, a Constituição processualista, inspirada por Kant, insiste numa fundamentação dos fundamentos constitucionais autônoma, racionalmente aceitável para todos os cidadãos, de acordo com sua pretensão.

2. Parto do princípio de que a Constituição do Estado liberal pode financiar sua necessidade de legitimação de modo auto-suficiente, ou seja, a partir dos efetivos cognitivos de um orçamento argumentativo independente de tradições religiosas e metafísicas. Todavia, mesmo sob essa premissa, permanece uma dúvida quanto ao ponto de vista motivacional. Os pressupostos de existência normativos do Estado constitucional democrático são, com respeito ao papel dos cidadãos do Estado, que se compreendem como sujeitos do direito, mais exigentes do que em relação ao papel dos cidadãos da sociedade, que são objetos do direito.
De quem é objeto do direito espera-se somente que, ao apreenderem suas liberdades (e reivindicações) subjetivas, não ultrapassem as fronteiras legais.
Algo diverso do que ocorre com a obediência diante de leis de liberdade compulsórias dá-se com as motivações e atitudes que se esperam de cidadãos do Estado no papel de co-legisladores. Estes deveriam apreender seus direitos de comunicação e participação de forma ativa, e não somente tendo em vista seus próprios interesses, mas de um modo que seja orientado pelo bem da comunidade. Isso exige um gasto motivacional dispendioso, que não pode ser obrigado legalmente.
Um dever de participar das eleições seria, num Estado de Direito democrático, um corpo estranho na mesma medida que uma solidariedade decretada. A disponibilidade de ser responsável, dado o caso, por concidadão estranhos e que permanecem anônimos e de aceitar interesses gerais devem ser apenas esperados de cidadãos de coletividades liberais.
Por isso as virtudes políticas, mesmo quando são apenas "cobradas" em forma de troco, são essenciais para a existência de uma democracia. Elas pertencem à socialização nas práticas e modos de pensamento de uma cultura política liberal. O status da cidadania, até certo ponto, está encaixado numa sociedade civil que vive de fontes espontâneas -se se quiser, "pré-políticas".
Disso não segue que o Estado liberal seja incapaz de reproduzir seus pressupostos motivacionais a partir de seus próprios efetivos seculares. Os motivos para uma participação dos cidadãos na formação política de opiniões e vontades alimentam-se, por certo, de planos de vida éticos e formas de vida culturais. Práticas democráticas, porém, desenvolvem uma dinâmica política própria.
O Estado de Direito da Constituição democrática não garante, de fato, somente liberdades negativas para os cidadãos civis preocupados com seu próprio bem-estar; com a dispensa de liberdades comunicativas, ele também mobiliza a participação dos cidadãos na disputa pública acerca de temas que concernem a todos coletivamente.
Assim, por exemplo, nos debates atuais em torno da reforma do Estado de Bem-Estar Social, da política de imigração, da Guerra do Iraque e da eliminação do serviço militar obrigatório, trata-se não somente de políticas singulares mas sempre, também, da interpretação duvidosa dos princípios constitucionais e, implicitamente, do modo como nós, à luz da diversidade de nossos modos de vida culturais, do pluralismo de nossas concepções de mundo e convicções religiosas, queremos nos compreender como cidadãos da Alemanha e como europeus.
De fato, numa retrospectiva histórica, um pano de fundo religioso comum, uma língua comum e, sobretudo, o despertar da consciência nacional foram benéficos para o surgimento de uma solidariedade cidadã altamente abstrata. As disposições republicanas nesse meio tempo, porém, desprenderam-se amplamente desses lastros pré-políticos. Pensem-se nos discursos ético-políticos acerca do Holocausto e da criminalidade em massa: eles tornaram os cidadãos alemães conscientes da Constituição como aquisição.

3. De acordo com as considerações feitas até agora, a natureza secular do Estado constitucional democrático não apresenta nenhuma fraqueza intrínseca ao sistema político como tal. Com isso, não estão sendo colocadas de lado causas externas.
Uma modernização descarrilada da sociedade no seu todo poderia muito bem tornar o vínculo democrático frouxo e enfraquecer o tipo de solidariedade para o qual o Estado democrático, sem que a possa obrigar juridicamente, está orientado. Evidências para um tal esmigalhamento da solidariedade cívica mostram-se no contexto mais amplo de uma dinâmica politicamente descontrolada formada pela economia mundial e a sociedade mundial.
Mercados, que não podem ser democratizados como administrações estatais, assumem, de modo crescente, funções de comando em setores da vida que até então eram mantidos coesos de forma política ou pelas de formas de comunicação pré-políticas. Dessa forma, não somente esferas privadas, em uma taxa crescente, são redirecionadas para mecanismos de ação cuja orientação é o sucesso, orientação que em cada caso depende de preferências próprias; também a esfera que é vencida pelas pressões públicas de legitimação está encolhendo.
O privatismo cívico é fortalecido pela desencorajadora perda de função de uma formação de opiniões e vontades democrática, que por enquanto somente funciona nas arenas nacionais pela metade e por isso não alcança mais os processos decisórios deslocados para planos supranacionais. Também a esperança, em via de desaparecer, de um poder de configuração político da comunidade internacional estimula a tendência da despolitização dos cidadãos. Em vista dos conflitos e das gritantes injustiças sociais de uma sociedade mundial altamente fragmentada, cresce a decepção com cada novo insucesso no caminho (primeiramente adotado após 1945) de uma constitucionalização do direito dos povos.
Um ceticismo radical quanto à razão é, por princípio, estranho à tradição católica. Mas o catolicismo teve dificuldade para lidar, até os anos 60 do século passado, com o pensamento secular do humanismo, do iluminismo e do liberalismo político. Assim, hoje novamente encontra ressonância o teorema de que uma modernidade contrita só pode ser auxiliada para fora de um beco sem saída por meio de uma orientação religiosa dirigida para um ponto de referência transcendental.
Considero melhor a questão se uma modernidade ambivalente irá se estabilizar a partir das forças seculares de uma razão comunicativa, que não deve ser levada ao extremo por meio de uma crítica da razão, mas que deve ser tratada de forma não-dramática, como uma questão empírica em aberto. Com isso, não quero incluir o fenômeno da permanência da religião em um ambiente ainda secularizado como um fato puramente social.

4. Em oposição à moderação ética de um pensamento pós-metafísico, do qual subtrai-se todo conceito obrigatório acerca da vida boa e exemplar, nas Escrituras sagradas e nas tradições religiosas articularam-se intuições acerca do erro e da libertação, do fim salvador de uma vida experimentada como sem solução, que, por séculos, foram sutilmente soletradas até a exaustão e mantidas hermeneuticamente despertas. Por isso, na vida comunitária de sociedades religiosas, contanto que elas somente evitem o dogmatismo e a coação moral, pode permanecer algo intacto que alhures se perdeu e que, somente com o conhecimento profissional de especialistas não pode ser restabelecido -refiro-me a possibilidades de expressão e sensibilidades suficientemente diferenciadas para uma vida fracassada, para patologias sociais, para o malogro de projetos individuais de vida e para a deformação de contextos desfigurados de vida.
A interpenetração entre cristandade e metafísica grega não produziu apenas a forma espiritual da dogmática teológica e a helenização -não em todos os aspectos- benéfica da cristandade. Também fomentou uma apropriação de conteúdos genuinamente cristãos pela filosofia. Esse trabalho de apropriação transformou o sentido originariamente religioso, mas não o deflacionou ou consumiu de modo que o esvaziasse.
A tradução da crença na imagem de Deus presente no homem para a dignidade igual -e a ser necessariamente observada por todos os homens- é uma tal tradução salvadora. Ela torna acessível o conteúdo de conceitos bíblicos para além das fronteiras de uma comunidade religiosa para o público genérico dos que não crêem ou crêem em outra coisa. Benjamin foi um que às vezes obtinha sucesso em tais traduções.
Assim, é do próprio interesse do Estado constitucional circular de forma que mantenha contato com todas as fontes culturais das quais se alimenta a consciência normativa e a solidariedade dos cidadãos. Essa consciência, que se tornou conservadora, espelha-se no discurso da "sociedade pós-secular".
Com isso não se aponta apenas para o fato de que a religião se afirma num ambiente crescentemente secular e de que a sociedade, por agora, conta com a permanência das comunidades religiosas. O termo "pós-secular" também não confere às sociedades religiosas apenas o reconhecimento público pela contribuição funcional que ela executa em vista da reprodução de motivos e atitudes desejáveis. Na consciência pública de uma sociedade pós-secular, espelha-se muito mais um juízo normativo que tem conseqüências para o contato político entre cidadãos não-crentes e crentes.

5. De um lado, a consciência religiosa foi forçada a processos de acomodação. Toda religião é, originariamente, "imagem do mundo" ou "doutrina compreensiva", também no sentido de que reivindica a autoridade de estruturar uma forma de vida no seu todo. Essa reivindicação de um monopólio interpretativo e de uma configuração abrangente da vida a igreja teve de abandonar devido às condições impostas pela secularização do saber, da neutralização da violência do Estado e da liberdade geral de credo.
Com a diferenciação funcional de sistemas sociais parciais, também a vida das comunidades religiosas separa-se dos seus ambientes sociais.
O papel do membro da comunidade diferencia-se daquele do cidadão. E, como o Estado liberal se direciona para uma integração política dos cidadãos que ultrapasse um mero modus vivendi, essa diferenciação das instâncias das quais alguém é membro não pode se esgotar numa acomodação cognitivamente despretensiosa do etos religioso a leis da sociedade secular impostas.
Muito mais do que isso, o ordenamento jurídico universalista e a moral social igualitária precisam ser unidos, a partir de dentro, ao etos da comunidade de tal forma que um, consistentemente, resulte do outro.
Essa expectativa normativa, com a qual o Estado liberal se defronta com as comunidades religiosas, coincide com os próprios interesses delas à medida que se lhes abre a possibilidade de desempenhar, para além do espaço público político, uma influência própria sobre a sociedade como um todo. De fato, o peso das conseqüências da tolerância, como mostram as regras de aborto mais ou menos liberais, não se divide simetricamente entre crentes e não-crentes. A compreensão da tolerância própria de sociedades pluralistas que possuem uma Constituição liberal não encoraja apenas os crentes, no convívio com quem não crê ou crê de outro modo, a perceber que eles precisam contar, de modo racional, com a permanência de um dissenso. Por outro lado, a mesma percepção, no quadro de uma cultura política liberal, é exigida dos não-crentes no contato com os crentes.
A neutralidade, quanto às concepções de mundo, da violência do Estado -que garante as mesmas liberdades éticas para cada cidadão- é incompatível com a generalização política de uma visão de mundo secularizada. Cidadãos secularizados, enquanto se apresentarem nos seus papéis de cidadãos, não devem negar, fundamentalmente, um potencial de verdade a visões de mundo religiosas nem colocar em questão o direito dos concidadãos crentes de contribuir, por meio de uma linguagem religiosa, para com discussões públicas. Uma cultura politicamente liberal pode esperar até mesmo dos seus cidadãos secularizados que tomem parte dos esforços em traduzir contribuições relevantes da linguagem religiosa para uma linguagem que seja publicamente acessível.

Copyright: Academia Católica da Baviera.
Tradução de Erika Werner.

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Quem é Habermas
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2404200508.htm

O alemão Jürgen Habermas (1929) é um dos principais filósofos da atualidade. Herdeiro da tradição do pensamento crítico, é o expoente da segunda geração da Escola de Frankfurt, que procurou fazer a ponte entre marxismo e psicanálise. Em 2003, publicou com o filósofo francês Jacques Derrida, morto no ano passado, um manifesto contra a ação dos EUA no Iraque e a favor de uma política externa européia comum. Sua principal obra é "Teoria da Ação Comunicativa" (1981), embora o pensador aborde praticamente todas as áreas de sua disciplina, como epistemologia, filosofia da história, filosofia da linguagem, filosofia moral e política e teoria social.

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"O homem desceu até o fundo do poço do poder, até a fonte de sua própria existência"
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2404200509.htm

por Joseph Ratzinger

Na aceleração do ritmo dos desenvolvimentos históricos na qual nos encontramos, parece-me que destacam-se, sobretudo, dois fatores como marcas de um desenvolvimento que antes começara a mover-se somente lentamente: de um lado temos a formação de uma sociedade mundial, na qual os poderes políticos, econômicos e culturais singulares têm sua atenção voltada uns para os outros sempre mais e, nos seus espaços diversos, tocam-se e interpenetram-se mutuamente.
Por outro lado, temos o desenvolvimento das possibilidades do homem, do poder, de fazer e destruir, que -para muito além de tudo com que se estava acostumado até agora- levanta a pergunta pelo controle jurídico e moral do poder. Assim, é altamente urgente a pergunta acerca de como as culturas que entram em contato podem encontrar fundamentos éticos que possam conduzir sua comunhão ao caminho justo e construir uma configuração comum, responsável juridicamente, que dome e ordene o poder.

Éticas e culturas
Que o projeto "Etos Mundial", exposto por Hans Küng [teólogo suíço], encontre uma tal procura, indica, no mínimo, que a questão está em debate. Isso também vale quando se aceita a perspicaz crítica que [o professor de filosofia na Universidade de Munique e na Universidade de Salzburg] Robert Spaemann ensaiou contra esse projeto.
Pois, aos dois fatores mencionados, pode-se adicionar um terceiro: no processo de contato e interpenetração das culturas, as certeza éticas, que até aquele momento eram sustentadas, encontram-se amplamente despedaçadas. A pergunta, especialmente no contexto dado, acerca do que é, afinal, o bem e por que, mesmo que com prejuízo para nós próprios, devemos fazê-lo, permanece sem resposta.
Parece-me evidente que a ciência como tal não pode gerar etos, que, portanto, uma consciência ética renovada não pode surgir como produto de debates científicos. Por outro lado, é certamente também indiscutível que a alteração fundamental da imagem humana e mundial, a qual se deu a partir da evolução dos conhecimentos científicos, está essencialmente ocupada com a ruptura de velhas certezas morais.
De forma concreta, a função da política é colocar o poder sob a medida do direito e assim ordenar seu uso razoável. Deve valer não o direito do mais forte, mas a força do direito. O poder na ordenação e no emprego do direito é o pólo oposto à violência, pela qual nós entendemos o poder sem o direito e contra o direito. Por isso é importante para cada sociedade superar a desconfiança em relação ao direito e suas ordenações, pois apenas assim a arbitrariedade pode ser proscrita e a liberdade pode ser vivida como uma liberdade comumente compartilhada. A liberdade sem direito é a anarquia e, por isso, é a destruição da liberdade.

Interesse comum
A tarefa de colocar o poder sob a medida do direito remete, portanto, à pergunta seguinte: como se forma o direito e como o direito deve ser constituído a fim de que seja veículo da justiça, e não um privilégio daqueles que têm o poder de estabelecer o direito?
A questão de que o direito não deve ser um instrumento de poder de poucos, mas a expressão do interesse comum a todos, parece resolvido, pelo menos pelos instrumentos de formação democrática da vontade. Apesar disso, me parece, permanece ainda uma pergunta.
Já que dificilmente há unanimidade entre os homens, somente às vezes permanece a delegação como instrumento imprescindível da formação democrática da vontade, outras vezes, a decisão da maioria, com o que, segundo a importância da pergunta, ordens de grandeza distintas podem ser empregadas para a maioria mas também as maiorias podem ser cegas ou injustas.
A história o mostra de maneira claríssima. Quando uma maioria, por maior que seja, reprime, com leis opressoras, uma minoria, por exemplo, religiosa ou racial, pode-se, nesse caso, ainda falar de justiça, de direito de modo geral?
Assim, o princípio da maioria continua a deixar em aberto a pergunta acerca dos princípios éticos do direito, portanto, daquilo que, em si, sempre permanece injusto ou também, de maneira inversa, aquilo que, de acordo com sua natureza, é um direito imutável, que antecede qualquer decisão pela maioria e que deve ser respeitado por ela.
Os tempos modernos formularam um acervo de tais elementos normativos em diversas declarações de direitos humanos e os retiraram do jogo das maiorias. Agora, com a consciência presente, podemos nos dar por satisfeitos com a evidência interna desses valores. Há em vigor, portanto, valores em si, os quais decorrem da essência do ser humano e por isso são intocáveis por todos os portadores dessa essência.
À extensão de uma tal idéia devemos voltar novamente mais adiante, ainda mais que essa evidência é, atualmente, de alguma maneira admitida em todas as culturas. O islã tem um catálogo de direitos humanos próprio, diverso do ocidental.
A China é, com efeito, atualmente marcada por uma forma cultural, o marxismo, originada no Ocidente, mas ainda coloca, até onde me foi informado, a pergunta se não se trata, no caso dos direitos humanos, de uma típica invenção ocidental, a qual deveria ser questionada.

A natureza do poder
Eu não gostaria de tentar definir a natureza do poder em si, mas de esboçar os desafios que resultam das novas formas de poder que se desenvolveram na última metade do século passado. No primeiro período do pós-guerra era dominante o pavor diante do novo poder de destruição, o qual cicatrizou nos homens com a invenção da bomba atômica. O homem se viu, de repente, capaz de destruir a si próprio e a seu mundo.
Surgia então a pergunta: quais mecanismos políticos são necessários para afastar essa destruição? Como podem tais mecanismos ser criados e tornados eficazes? Como podem ser mobilizadas potências éticas que moldam tais formas políticas e lhes conferem efetividade?

Na prática, por um longo período, foram a concorrência entre os blocos de poder reciprocamente opostos e o medo de iniciar a própria destruição com a destruição do outro que nos protegeram dos horrores da guerra nuclear. A demarcação recíproca do poder e o medo em torno da própria sobrevivência revelaram-se as forças salvadoras.
Nesse meio tempo, não nos assombra mais tão intensamente o medo diante de uma grande guerra, mas o medo diante do onipresente terror que pode atacar e mostrar-se efetivo em qualquer local. Assim, a pergunta pelo direito e pelo etos se deslocou: de que fontes se alimenta o terror? Como é possível ter êxito na missão de banir essa nova doença da humanidade a partir do seu interior?

Tutela da razão?
Ao mesmo tempo, é assustador que, ao menos em parte, o terror se legitime moralmente. As mensagens de Osama bin Laden apresentam o terror como a resposta que os povos sem força e oprimidos dão à arrogância dos poderosos, como a justa punição à sua presunção e às suas arbitrariedade e crueldade blasfemas. Para os homens em determinadas situações políticas e sociais, tais motivações são evidentemente persuasivas. Em parte, o comportamento terrorista é apresentado como uma defesa de uma tradição religiosa contra o ateísmo da sociedade ocidental.
Nesse ponto, impõe-se uma pergunta à qual nós igualmente devemos retornar: se o terrorismo é também alimentado por meio do fanatismo religioso (e ele o é), a religião é então um poder capaz de curar e salvar ou então, antes, um poder arcaico e perigoso que edifica falsos universalismos e, dessa forma, instiga a intolerância e o terror? A religião não deve, nesse caso, ser colocada sob a tutela da razão e ser cuidadosamente restringida? Com isso surge então a pergunta: quem pode fazer isso? Como se faz isso?
Mas a pergunta geral permanece: a gradual extinção da religião, sua superação, deve ser encarada como um progresso necessário da humanidade, a fim de que ela alcance o caminho da liberdade e da tolerância universal, ou não?
Nesse meio tempo, uma outra forma de poder foi deslocada para o primeiro plano, a qual, num primeiro momento, parece ser puramente benéfica e merecedora da aprovação de todos, mas, na realidade, pode se tornar um novo tipo de ameaça aos homens. O homem é agora capaz de fabricar homens, produzi-los, por assim dizer, em um vidro com reagente. O homem se torna produto, e com isso se altera a relação dos homens consigo mesmos no seu fundamento mesmo. Ele não é mais um presente da natureza ou do Deus criador; ele é seu próprio produto.
O homem desceu até o fundo do poço do poder, até a fonte de sua própria existência. A tentação de agora finalmente construir o homem direito, a tentação de fazer experimentos com humanos, a tentação de encarar os homens como lixo e eliminá-los não é uma fantasia de moralistas inimigos do progresso.
Quando antes se nos impôs a pergunta se a religião é realmente uma potência moral positiva, então agora deve emergir a incerteza acerca da confiabilidade da razão. Afinal de contas, a bomba atômica também é um produto da razão; afinal de contas, a criação e a seleção de seres humanos foram inventadas pela razão.

Tutela da religião?
Portanto, agora a razão, inversamente, não deveria ser colocada sob supervisão? Mas por meio de quem ou de quê? Ou talvez a religião e a razão deveriam se demarcar mutuamente e cada uma deveria indicar os nichos da outra e a levar a seu caminho positivo?
Nesse ponto coloca-se outra vez a pergunta: como em uma sociedade mundial, com seus mecanismos de poder e suas forças incontroláveis -assim como com os diversos pontos de vista do que seja direito e moral- pode ser encontrada uma evidência ética válida que tenha força de motivação e realização suficientes para responder aos desafios mencionados e ajudar a resistir-lhes?
Primeiramente, é natural lançar-se um olhar nas situações históricas que são comparáveis às nossas, tanto quanto for possível verificar elementos de comparação. Em todo caso, vale a pena lançar um breve olhar sobre o fato de que a Grécia conheceu suas "Luzes", que o direito legitimado pelos deuses perdeu sua certeza e de que se precisou indagar acerca dos mais profundos fundamentos do direito.
Assim nasceu o pensamento: do lado oposto ao direito legal, que pode ser injusto, deve haver um direito, deve certamente existir um direito que vem da natureza, que vem do ser do próprio homem. Esse direito deve ser encontrado e compõe, então, o corretivo para o direito positivo.
Mais próximo de nós, o olhar recai sobre uma dupla ruptura, que no começo dos tempos modernos se colocou a favor da consciência européia e forçou o caminho para os fundamentos de uma uma nova reflexão acerca do conteúdo e da fonte do direito. Temos, inicialmente, o rompimento das fronteiras do mundo europeu, cristão, que se dá com o descobrimento da América.
Agora o homem se depara com povos que não tomaram contato com a estrutura cristã de crença e de direito, que até então fora a fonte do direito para todos e a ele dava sua forma. Não há nenhuma comunhão jurídica com esses povos.
Mas são eles então desprovidos de direito, como alguns afirmaram naquele tempo e como foi amplamente praticado por muito tempo, ou há um direito que perpassa todos os sistemas jurídicos, que aponta para homens como homens no seu ser um para o outro e os une? A segunda ruptura no mundo cristão ocorre dentro da própria cristandade pela fragmentação da fé, pela qual a comunidade de cristãos foi dividida -comunidades que se confrontaram reciprocamente em parte de maneira hostil.
Novamente, trata-se de desenvolver um direito comum que antecede o dogma, ao menos um direito mínimo, cujos fundamentos não devem mais repousar na fé, mas na natureza, na razão do homem.
O direito natural permaneceu sobretudo na Igreja Católica a figura de argumentação com a qual ela recorre -nas discussões com a sociedade secular e com as comunidades de outras crenças- à razão comum e busca os fundamentos para o entendimento acerca dos princípios éticos do direito em uma sociedade secular plural.
Mas esse instrumento, infelizmente, se tornou gasto, e eu não gostaria, por isso, de me apoiar nele nesta discussão. A idéia do direito natural pressupôs uma noção de natureza na qual a natureza e a razão vão uma à outra. Essa visão da natureza, com a vitória da teoria da evolução, despedaçou-se.

Interculturalidade
Como último elemento do direito natural, o qual desejava ser, em um nível mais profundo, um direito racional, pelo menos nos tempos modernos, permaneceram os direitos humanos. Eles não são compreensíveis sem o pressuposto de que o homem como homem, simplesmente por sua filiação à espécie humana, é um sujeito de direitos, que sua existência carrega em si valores e normas que devem ser descobertos, mas não inventados.
Talvez à doutrina dos direitos humanos devesse hoje em dia ser acrescida uma doutrina acerca dos deveres humanos e dos limites do homem, e isso poderia ajudar a atualizar a pergunta se não pode haver uma razão da natureza e, portanto, um direito racional para os homens e sua posição no mundo.
Uma tal discussão deveria hoje ser constituída e exposta de maneira intercultural. Para os cristãos, tratar-se-ia da criação e do criador. No mundo indiano, a isso corresponderia o conceito de darma, a legitimidade interna do ser; na tradição chinesa, a idéia das ordenações do céu.
Para mim, a interculturalidade compõe hoje uma dimensão indispensável para a discussão acerca dos fundamentos do ato de ser humano, que não pode ser conduzida nem unicamente dentro do universo cristão nem totalmente dentro de uma tradição racional ocidental.
Ambas parecem, de acordo com o modo como se compreendem, universais e pretendem sê-lo também de direito. Na realidade, elas precisam reconhecer que atingem somente partes da humanidade e também somente são inteligíveis a partes da humanidade. O número de culturas concorrentes é, de fato, muito mais limitado do que quer parecer em um primeiro olhar.
É importante, sobretudo, notar que dentro dos espaços culturais não há mais unidade, mas que todos os espaços culturais são moldados por tensões profundamente arraigadas em sua própria tradição cultural. No Ocidente, isso é bem evidente.
Mesmo quando a cultura secular de uma racionalidade restrita, acerca da qual Habermas nos deu um impressionante retrato, é amplamente dominante e entende a si mesma como elo, o entendimento cristão da realidade é, como tem sido até o momento, uma força efetiva. Ambos os pólos encontram-se em proximidade ou tensão diversas, em uma disposição de aprendizagem recíproca ou em uma recusa, mais ou menos enfática, de um em relação ao outro.
O espaço cultural islâmico também é moldado por semelhantes tensões; do absolutismo fanático de um Bin Laden até as posturas que estão abertas a uma racionalidade tolerante estende-se um vasto arco.
O terceiro grande espaço cultural, a cultura indiana, ou melhor, os espaços culturais do hinduísmo e do budismo, são, por sua vez, moldados por tensões semelhantes, mesmo que elas, ao menos para o nosso olhar, distingam-se de maneira menos dramática. Também essas culturas se vêem sujeitas tanto à reivindicação da racionalidade ocidental quanto às interpelações da fé cristã, estando ambas presentes ali.
As culturas tribais da África e as culturas tribais da América Latina, novamente lembradas por certas teologias cristãs, completam esse quadro. Elas se mostram, de uma maneira ampla, como alicerces de uma racionalidade ocidental mas também como alicerce da reivindicação universal da revelação cristã.
O que decorre de tudo isso? Primeiramente, assim me parece, a não-universalidade factual das duas grandes culturas do Ocidente -a cultura da fé cristã assim como a cultura da racionalidade secular-, por mais que as duas, em todo o mundo e em todas as culturas, cada uma do seu modo, contribuam em sua configuração.
Nossa racionalização secular, por mais que ilumine nossa razão formada no Ocidente, não é sensata para qualquer "ratio"; ela, como racionalidade, em sua tentativa de se fazer evidente, se depara com limites. Sua evidência está factualmente vinculada a determinados contextos culturais e precisa reconhecer que, como tal, não pode ser compreendida por toda a humanidade e, por isso, nela, não pode operar nem mesmo de modo geral.
Em outras palavras, a fórmula mundial, seja ela racional, ética ou religiosa, com a qual todos concordam e que poderia então sustentar o todo, não existe. Em todo caso, ela é atualmente inalcançável. Por isso, o assim chamado etos mundial permanece também uma abstração.
O que há então para ser feito? Em relação às conseqüências práticas, eu concordo amplamente com o que Habermas expôs acerca de uma sociedade pós-secular, acerca da disposição de aprendizagem e da autolimitação de ambos os lados. Eu gostaria então de resumir minha própria visão em duas teses e concluir com isso.

Duplos limites
1) Nós vimos que há patologias na religião que são extremamente perigosas e que tornam necessário encarar a luz divina da razão como um, por assim dizer, órgão de controle, a partir do qual a religião sempre deve se deixar purificar e organizar novamente, o que foi, aliás, também a noção dos padres da igreja.
Em nossa reflexão, porém, mostrou-se que também há patologias da razão (do que, hoje em dia, a humanidade em geral não tem exatamente consciência), uma hybris da razão, a qual não é menos perigosa, ao contrário, devido à sua potencial eficiência, muito mais ameaçadora: a bomba atômica, o homem como produto. Por isso, por outro lado, a razão também deve ser lembrada em seus limites e aprender a disposição de ouvir as grandes tradições religiosas da humanidade. Quando ela se emancipa completamente e coloca de lado essa disposição de ouvir, essa capacidade de correlação, ela se torna destruidora.
Eu falaria de uma necessária correlação entre razão e fé, entre razão e religião, as quais são convocadas para uma purificação e salvação recíproca, que se carecem mutuamente e que precisam reconhecer isso.
2) Essa regra fundamental deve ser então concretizada, no contexto intercultural de nossa atualidade, de forma prática. Sem dúvida, são a fé cristã e o racionalismo secular ocidental as duas partes principais dessa correlação. Pode e deve-se dizer isso sem falso eurocentrismo.
Ambas as partes determinam a situação mundial em uma medida tal como nenhuma outra dentre as forças culturais. Mas isso certamente não significa que dever-se-ia colocar de lado as outras culturas como uma espécie de "quantité négligeable" [em francês no original: "quantidade negligenciável"]. Isso seria com certeza uma hybris ocidental, pela qual nós pagaríamos caro e, em parte, já pagamos.
É importante para esses dois grandes componentes da cultura ocidental deixarem-se comprometer com um ouvir, com uma verdadeira correlação com essas culturas. É importante levá-las para dentro na tentativa de uma correlação polifônica, na qual elas próprias se abram para uma complementaridade essencial entre razão e fé, de modo que um processo universal de purificação possa se desenvolver, no qual as normas e os valores essenciais de alguma forma conhecidos ou pressentidos por todos os homens possam adquirir uma nova intensidade luminosa, de sorte que novamente possa vigorar na humanidade aquilo que segura o mundo.

Copyright: Academia Católica da Baviera.
Tradução de Erika Werner.

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Quem é Ratzinger
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2404200510.htm

O cardeal alemão Joseph Ratzinger (1927), atual papa Bento 16, foi o braço direito de João Paulo 2º nas questões doutrinárias. Teólogo importante, foi durante 23 anos o guardião da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, que substituiu o Santo Ofício da Inquisição e conta com o apoio das alas mais conservadoras da igreja. Seus pontos de vista sobre temas como controle da natalidade, casamento gay e feminismo são considerados conservadores. Ratzinger começou a ganhar atenção ao chegar a Roma, em 1962, como conselheiro no Concílio Vaticano 2º. Lecionou teologia em várias universidades alemãs. É o oitavo papa alemão da história.

sexta-feira, 26 de março de 2010

O ser e o aparentar a ser


Esta mensagem foi enviada pelo advogado Edson Dias dos Santos, pessoa extremamente versada em Direito Público, com anos de experiência na área.

"O MAL DO ESPERTO É ACHAR QUE TODO MUNDO É BOBO...

O jovem advogado, recém-formado, montou um luxuoso escritório num prédio de alto padrão na Avenida Paulista e botou na porta uma placa dourada: Dr. Antônio Sampaio Soares Especialista em Direito TributárioNo 1º dia de trabalho, chegou bem cedo, vestindo o seu melhor terno, sentou-se atrás de sua escrivaninha, e ficou aguardando o primeiro cliente.Meia hora depois batem à porta. Ele, sorridente, pede para a pessoa entrar e sentar-se. Rapidamente, apanha o telefone do gancho e, para 'fazer grau', começa a simular uma conversa:- Mas é claro, Sr. Mendonça, pode ficar tranqüilo! Esta causa está ganha. Liquidamos com os nossos argumentos! O juiz já deu parecer favorável!...- Sei, sei... como? Ah, os meus honorários? Não se preocupe! O senhor pode pagar os outros 50 mil na semana que vem!... É claro!... O que é isso, sem problemas!... O senhor me dá licença agora que eu tenho um outro cliente aguardando... Obrigado.... Um abraço!Bate o fone no gancho com força e diz: - Muito bem. E o que o senhor deseja?- Eu vim instalar o telefone...
F I M"

Que conclusões devemos tomar com relação a essa anedota? Já sabemos tudo, durante e após o curso universitário, ou devemos estar em constante aprendizado, num estado de humildade intelelectual, no intuito de se evitar gafes como esta?

Sócrates já dizia: "Só sei que nada sei."

Jesus disse: "Deus perdoai-os, pois eles não sabem o que fazem."

Santo Agostinho dizia que o vício fundamental é o orgulho, e a virtude fundamental é a humildade.




O que é preferível? A esperteza ou a honestidade? A aparência ou a essência? Lembrem-se de Sócrates a respeito do valor do auto-conhecimento. Sem isso, o que podemos conhecer?

Os princípios do direito público e o Estado: a dialética dos interesses públicos e dos interesses privados em Rawls e Habermas




Desde a cisão entre Direito e Moral, metodologicamente proposta por Hans Kelsen, se diz que o que é legal nem sempre é moral. Como conseqüência as normas jurídicas muitas vezes se tornam distantes do mundo real e, freqüentemente, em vez de protegerem o cidadão, fustigam-no, em nome do "interesse público", ou de algo que o valha. O ordenamento jurídico [1], neste âmbito puramente normativo, é o mantenedor da ordem social, tal como ela se apresenta, um legitimador do "status quo", daqueles que se apoderaram do aparato estatal para impor regras à maioria, sob um discurso de agir em seu nome, porém, na verdade, dando prosseguimento ao liberalismo econômico que deveria ser restringido em nome do liberalismo político. No segundo, o cidadão tem liberdade efetiva e igualdade eqüitativa de condições para fazer valer seus direitos, principalmente os de participação política. No primeiro, as "carreiras estão abertas a talentos" e a liberdade restringe-se praticamente a uma esfera de não intervenção do Estado sobre o indivíduo.




Este texto versa sobre a as teorias de John Rawls (ver foto à acima) e de Jürgen Habermas e suas nuances com relação ao Direito Administrativo (ver foto abaixo).






quarta-feira, 17 de março de 2010

O utilitarismo de Bentham: a ética dos resultados


Prof. Ms. Roger Moko Yabiku


O utilitarismo é uma doutrina que se originou na Inglaterra, tendo como principais autores Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Aliás, Bentham foi o mestre de Stuart Mill, que lançou as bases da democracia liberal. Também conhecido como moralismo britânico ou pensamento radical, liberalismo clássico ou positivismo inglês, o utilitarismo influencia o pensamento ético-filosófico, econômico e jurídico por pelo menos dois séculos. De acordo com Luis Alberto Peluso (p. 202), foi a primeira escola filosófica, em sentido estrito, que se originou no mundo de fala inglesa. Essa doutrina é muito atual e seus argumentos são utilizados frequentemente nos processos decisórios, seja no âmbito particular, militar ou político, justamente por se enfocar mais nas consequências. Trata-se de uma teoria ética consequencialista, na qual se definem anteriormente os bens a serem atingidos ou protegidos. E o Direito seria o meio de consegui-los. Uma curiosidade. Essa doutrina também inspirou, quiçá, programas contemporâneos de entretenimento, na linha dos reality shows, como o famigerado “Big Brother”. Qualquer semelhança com o Panopticon de Bentham poderá não ser mera semelhança.

Bentham: revolucionário e conservador

Bentham nasceu em Londres, um dos seis filhos de um advogado de renome e corretor de imóveis. Quando tinha 12 anos, entrou no Queen’s College, em Oxford, sagrando-se bacharel em Humanidades em 1763. Estudou numa das escolas de Direito de Londres (Inn’s of Court), a Lincoln’s Inn, mas voltou a Oxford, para estudar com Sir William Blackstone, a quem criticou severamente pela sua teoria dos Direitos Naturais, a qual, para Bentham, era irracional. Seguiu a tradição empirista de John Locke e de David Hume. Não quis advogar, pois decepcionou-se com a maneira como era conduzida a prática da profissão naquela época.
Em 1766, tornou-se mestre em Humanidades e retornou para Londres. Era um reformador político e inventor. Em suas aulas, Peluso atribui a invenção de um protótipo incipiente de geladeira a Bentham. Apesar dos avanços “radicais”, Bentham também era um conservador. Tinha preocupação em preservar a sociedade inglesa do furor que ocorreu na França e nos Estados Unidos, a revolução.
Escreveu vários livros como “Fragmento sobre o governo” e “Introdução aos princípios da moral e da legislação”. Bentham criou a palavra “deontologia”, ou seja, o conjunto de princípios morais e legais aplicados às atividades profissionais. A expressão Direito Internacional também é uma criação atribuída a Bentham, antes utilizava-se o termo “Direito das Gentes”.
Tornou-se uma pessoa influente e seu grupo ajudou a fundar a Universidade de Londres. Morreu aos 84 anos, em 1832. Seu cadáver foi embalsamado e disposto na Universidade de Londres (ver foto). Toda vez que o colegiado se agrega, o cadáver de Bentham participa da reunião.

O princípio da utilidade



Para Wayne Morrison (p. 222), o utilitarismo de Bentham foi uma tentativa de se criar uma ciência objetiva da sociedade e da política. Pensava-se em se livrar do subjetivismo, tal como da influência religiosa e dos acidentes históricos. Interesse e razão se combinavam e o ponto arquimediano (de equilíbrio) estaria na própria natureza: o princípio da utilidade.
O francês Helvetius escreveu que o homem é governado pelo prazer e pela dor. Essa foi a base do livro “Introdução aos princípios da moral e da legislação”. Escreveu Bentham: “A natureza colocou a humanidade sob o domínio de dois senhores soberanos, a dor e o prazer. Só a eles compete indicar o que devemos fazer, assim como determinar o que faremos. A seu trono estão atrelados, por um lado, o critério que diferencia o certo do errado, e, por outro, a cadeia das causas e dos efeitos.”
O ser humano busca o prazer e foge da dor. E este seria o embasamento para uma filosofia jurídica crítica e também como modelo para o legislador hábil controlar e dirigir o comportamento social. “Nesse sentido, ele defendeu a idéia de que o princípio que rege tanto as ações individuais quanto as sociais é: ‘a busca da felicidade para o maior número de pessoas’. Esse princípio da utilidade daria consistência a uma Ética capaz de produzir o melhor dos indivíduos e a melhor das coletividades. Portanto, a busca do prazer pela fuga da dor é o princípio motivador da ação humana, tanto individual quanto coletiva. Disso decorria uma Ética para indivíduos racionais, capazes de buscar seus próprios interesses, amantes da vida. Enfim, uma Ética com todos os ingredientes da visão Iluminista do mundo que teria caracterizado os séculos XVII e XVIII”, assinala Peluso (p. 13-14).
Peluso descreve os princípios (P) e as regras (R) morais do utilitarismo de Bentham (p. 24-25):

“I – Princípio da Utilidade:
P1. Todo ser humano busca sempre maior prazer possível.
R1. Busque sempre o maior prazer e fuja da dor.
II – Princípio da Identidade de Interesses:
P2. O fim da ação humana é a maior felicidade de todos aqueles cujos interesses estão em jogo. Obrigação e interesse estão ligados por princípio.
R2. Aja de forma que sua ação possa ser modelo para os outros.
III – Princípio da Economia dos Prazeres:
P3. A utilidade das coisas é mensurável e a descoberta da ação apropriada para cada situação é uma questão de aritimética moral.
R3. Faça o cálculo dos prazeres e das dores e defina o bem em termos genéricos.
IV – Princípio das Variáveis Concorrentes:
P4. O cálculo moral depende da identificação do valor aritmético de sete variáveis: Intensidade/Duração/Certeza/Proximidade/Fecundidade/Pureza/Extensão.
R4. Procure maximizar a objetividade e a exatidão de suas avaliações morais.
V – Princípio da Comiseração:
P5. O sofrimento é sempre um mal. Ele só e admissível para evitar um sofrimento maior.
R5. Alivie o sofrimento alheio.
VI – Princípio da Assimetria:
P6. Prazer e dor possuem valores assimétricos, pois a eliminação da dor sempre agrega prazer.
R6. Escolha sempre a ação que resulta na maior quantidade de prazer, agregando o prazer da eliminação de sofrimento.”


O papel do Direito



Para Bentham, ética, moral e Direito eram a mesma coisa. Pretendia iniciar uma nova ciência do Direito, tal como reformar a sociedade, tornando-a moderna e disciplinada. “Contrariamente aos juristas mais destacados desse período, Bentham defendeu a idéia de que as leis são revogáveis e aperfeiçoáveis”, salienta Peluso (p. 19).
Porém, a medida também era conservadora: “Bentham sempre temeu as revoluções que, em seu tempo, viu varrer o continente europeu e as Américas. A ordem e a segurança eram preocupações centrais, assim como era crucial poder contar com essa previsibilidade da interação e da certeza do resultado. O comércio exige um sistema jurídico que faça cumprir as promessas e assegure as expectativas legítimas”, narra Morrison (p. 225). Também frisa Peluso (p. 209): “Educação e disciplina social são as duas pilastras que garantem a sociedade e a civilização. A sociedade é um sistema de recompensas e punições, e a tarefa do governo consiste em garantir a estrutura para a implementação das punições e as condições para que os indivíduos possam desfrutar das recompensas que se seguem de seus próprios esforços.”
O Direito, então – para Bentham -, assume importância de destaque. O legislativo só deve elaborar e aprovar leis segundo o princípio da utilidade. As leis devem ser produzidas para aumentar a felicidade do maior número de pessoas. As leis poderiam ser principais (se dirigidas aos cidadãos), ou subsidiárias (para as autoridades fazerem cumprir as primeiras). “Contudo, o utilitarismo não se esgota nessa Ética do sucesso. Ele também transforma em motivo ético o fracasso. Pois que, em seu projeto, se o princípio da ação humana é a busca do prazer e a eliminação da dor, ele estabelece um vínculo causal entre o prazer do agente individual e o sofrimento que possa, de alguma forma, estar associado à sua ação. Assim, o agente moral é responsável pela eliminação de todas as formas de sofrimento identificadas na convivência social. A eliminação do sofrimento alheio se torna motivo da ação moral de cada um”, comenta Peluso (p. 14).
A verdadeira função do Direito seria disciplinar as pessoas, como ensina Peluso (p. 209): “Nesse sentido a educação e a disciplina social são ingredientes indispensáveis para o funcionamento da sociedade. Pessoas sem educação frequentemente buscam a oportunidade de se aproveitar das recompensas devidas a outros, ou ainda procedem sem levar em consideração os verdadeiros efeitos, em termos de prazer e de dor, de sua conduta pessoal.”
Houve também especial atenção às sanções e punições, já que o prazer e a dor atribuem verdadeiros valores aos atos e também são causas eficientes do comportamento, explica Morrison (p. 227). Paul Smith complementa: “Para Bentham, portanto, a utilidade (prazer ou felicidade) define o benefício. Essa concepção é usada para determinar o que é Direito. Bentham propõe o princípio da utilidade ou da maior felicidade. Esse é o princípio que ‘aprova ou não toda ação’ de acordo com sua tendência de ‘aumentar ou diminuir’ a felicidade. Aplica-se a toda ação, apenas às dos indivíduos, mas também as do governo.”
Comenta Smith (p. 162) que, de acordo com Bentham, os elementos essenciais e a estrutura do utilitarismo seriam a concepção do benefício como prazer ou felicidade (utilidade) e o Direito seria simplesmente algo para aumentar essa felicidade. A ação correta seria aquela que atendesse melhor aos desígnios da utilidade, a maior felicidade ou o prazer para o maior número possível de pessoas. “Fica evidente que, na formulação de Bentham, a interpretação do princípio de utilidade implica a coincidência entre o prazer particular e o bem público. Nesse sentido, a felicidade alheia é desejada porque está associada com a própria felicidade do sujeito moral”, explica Peluso (p. 18). Morrison (p. 229) complementa: “O direito objetiva aumentar a felicidade total da sociedade ao desestimular os atos que possam gerar más consequências. Um ato criminoso ou ilegal representam, por definição, uma prática claramente prejudicial à felicidade do corpo social; somente um ato que, de alguma forma específica, inflija na prática algum tipo de dor – diminuindo, assim, o prazer de um indivíduo ou grupo específico – deve ser objeto da preocupação do Direito.”

As sanções como força vinculatória

Justifica-se, assim, que os direitos de uma minoria sejam sacrificados em nome dos direitos de uma maioria. Porém, isso não é tão simples. É preciso saber calcular o prazer e a dor. As sanções dão força vinculatória a uma regra de conduta ou lei, explica Morrison (p. 227), e são, no total, de quatro tipos: físicas, públicas, morais ou religiosas. Seriam as sanções ameaças de dor. “Na vida pública, o legislador entende que os homens se sentem ligados a certos atos somente quando estes têm uma sanção clara a eles associados, e tal sanção consiste em alguma forma de dor se o tipo de conduta determinado pelo legislador for infringido pelo cidadão. Portanto, a principal preocupação do legislador é decidir que formas de comportamento tenderão a aumentar a felicidade da sociedade, e quais sanções serão mais passíveis de produzir essa maior felicidade. (...) Além disso, Bentham adotou a posição de que, sobretudo na esfera social em que o direito opera, a lei só pode punir aqueles que realmente infligiram sofrimento, qualquer que seja seu motivo, ainda que se admitam algumas exceções”, assevera Morrison (p. 228).
A teoria da punição proposta pelo utilitarismo é simples e mais capaz de atingir seus objetivos. Porém, considerava Bentham que a punição é um mal em si, pois acarreta em sofrimento e dor. Só se utiliza a punição, então, no intuito de punir um mal maior. Deve ela ser útil para que, ao final se tenha mais prazer e felicidade. Desta feita, não se trata de retaliação ou de vingança pura. “A punição não deveria ser infligida (i) quando for infundada; por exemplo, quando ineficaz, no sentido de não ser capaz de impedir um ato prejudicial; (ii) quando for ineficaz, no sentido de não ser capaz de impedir um ato prejudicial; por exemplo, quando uma lei criada depois do ato for retroativa, ou ex post facto, ou quando uma lei já existe mas não foi publicada. A punição também seria ineficaz quando estivessem envolvidos uma criança, um louco ou um bêbado, ainda que Bentham admitisse que nem a infância nem a intoxicação eram bases suficientes para a ‘impunidade absoluta’. A punição também não deve ser infligida (iii) quando for improfícua ou excessivamente onerosa, ‘quando os danos em que resultasse fossem maiores do que aquilo cuja ocorrência impedisse’; (iv) quando for desnecessária, ‘quando o dano puder ser impedido ou interrompido sem ela, isto é, a um menor custo’, sobretudo nos casos ‘que consistem na disseminação de princípios perniciosos em matéria de dever’, uma vez que em tais casos a persuasão é mais eficaz do que a força”, diz Morrison (p. 230).

Panopticon: primórdios do ‘Big Brother’



No programa de televisão “Big Brother”, todos os participantes são vigiados a todo momento por câmeras de televisão. Essa sensação de ser observado a todo momento não é novidade. Esse mecanismo que utilizar o olhar alheio como meio de se coibir comportamentos foi concebido por Bentham. Ele concebeu um tipo de prédio com uma arquitetura singular e o denominou de Panopticon. Nesse imóvel, as pessoas confinadas seriam vigiadas constantemente, para condicionar o comportamento humano. Esse modelo poderia ser aplicado às prisões, porém, seria aberto ao público, que, durante as visitações, examinaria a arquitetura e manteria a vigilância sobre os reclusos. O francês Michel Foucault, no livro “Vigiar e Punir”, escreveu um capítulo específico sobre o Panopticon. Vale a pena conferir e comparar com o “Big Brother”.



Leia mais:

MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito – dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PELUSO, Luis Alberto. Ética e Utilitarismo. Campinas: Alinea, 1998.
SMITH, Paul. Filosofia Moral e Política – liberdade, direitos, igualdade e justiça social. São Paulo: Madras, 2009.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Santo Agostinho, leitor de Platão: entre fé, razão e carne


Prof. Ms. Roger Moko Yabiku


Aurélio Agostinho (354-430), mais conhecido como Santo Agostinho, nasceu em Tagasta, cidade situada na Numídia (atual Argélia), na África do Norte. Seu pai era pagão e sua mãe, católica. Aos 16 anos, em Cartago, estudou retórica. À época, rejeitava a fé e a moral cristãs. Viveu com uma concubina, Flora Emília, por dez anos, com quem teve um filho, Adeodato. Depois, partiu para a Itália, onde teve outra amante. Leu Hortensius, de Cícero, e assim despertou um interesse mais profundo pela sabedoria. Num primeiro momento, visando compreender como o mal e o amor influenciam a vida humana, estudou a filosofia dos maniqueus, que se guia por dois princípios básicos: a-) princípio da luz ou do bem, e b-) princípio das trevas ou do mal.
De acordo com Wayne Morrison (nota de rodapé, p. 67), ambos princípios coexistem eternamente e em conflito. Isso refletiria o eterno conflito entre corpo e alma, no qual a alma é associada como luz em busca do bem, e o corpo como trevas cuja tendência é inclinar-se ao mal. Porém, com essas dúvidas, impasses gerados diante da ambivalência dos princípios presentes na natureza, como resolver o impasse? Como verificar se a natureza é realmente confiável?
Morrison (nota de rodapé, p. 67-68) explica que Santo Agostinho recorreu ao neoplatonismo, no qual a busca de conhecimento seria basicamente o conhecimento dos fins últimos. Mas que, para ele, seria basicamente chegar ao conhecimento de que Deus existe e de que é preciso buscar a vontade divina. Aí, passou a conciliar a filosofia de Platão com o cristianismo. “Agostinho, como Platão, tinha paixão e sede de verdade: alcançá-la é chegar à felicidade; estes são os dois polos, dois pilares que sustentam o maravilhoso edifício da filosofia e da teologia de Agostinho”, coloca Olinto Pegoraro (p. 62).
Converteu-se ao cristianismo em 386 e deixou de ser professor de retórica. A verdade, para Agostinho, passou a ser encontrada no interior de cada homem, de busca de auto-conhecimento, que, automaticamente, corresponderia ao conhecimento de Deus. “Conhecer-se e conhecer a Deus constituem uma única e mesma atividade do espírito, para Agostinho. Alma e Deus, como objetos de conhecimento, remetem a um estudo unificado de todo o mistério da criação”, falam Eduardo Carlos Bianca Bittar e Guilherme de Assis Almeida (p. 223).
Em 396, foi nomeado bispo de Hipona, cidade portuária perto de onde nasceu. “A conversão de Augustinus, em 386, representou sua verdadeira adesão à filosofia, não no sentido de que não a praticasse anteriormente (maniqueísmo), mas no sentido de que sua profissão de fé se tornou o sacerdócio da palavra divina por meio de sua filosofia”, assinalam Bittar e Almeida (p. 212).
Testemunhou a queda do Império Romano e a transição do paganismo romano ao cristianismo. “Em Santo Agostinho, é flagrante a preocupação com o transcendente, e isso não só em função de suas conversão para o cristianismo, mas sobretudo em função de sua profunda formação em cultura helênica, sobretudo tendo-se em vista o eco do platonismo nos séculos III e IV da Era Cristã. É certo que no teologismo da obra agostiniana vive-se o mesmo estremecimento pelo qual Agostinho passou quando de suas conversão. Isso porque a influência dos dogmas cristãos estão-lhe a perpassar gradativa e paulatinamente mais os escritos à medida que ganha maturidade seu pensamento”, explicam Bittar e Almeida (p. 211-212).
Um adendo. A primeira concubina de Santo Agostinho, Flora Emília, foi retratada no livro “Vita brevis”, do filósofo e escritor norueguês Jostein Gaarder (autor de “O mundo de Sofia”). Trata-se de uma crítica dela ao desprezo sofrido depois do abandono do seu amado e da sua jornada para ela mesma se tornar uma filósofa. O próprio Gaarder diz que o manuscrito teria sido comprado num “sebo” na Argentina, porém, não havia possibilidade de se atestar a veracidade do mesmo.

Conversão de Agostinho: conflito entre fé e carne

Em Confissões, Santo Agostinho escreveu sobre sua conversão à fé cristã. A narrativa, embora com palavreado bíblico, é recheado de aflição, desejos e, por último, anseia a descoberta de um local onde a alma atormentada possa repousar. “Santo Agostinho travou uma luta com seu corpo e sua mente; vivenciou a instabilidade dos bordéis, da bebida e das prostitutas. (...) O caminho de Santo Agostinho para a humanidade é uma narrativa de ascetismo e renúncia. Devemos renunciar ao mal e lutar para superar quaisquer elementos de nossas vidas que sejam um obstáculo a uma vida mais elevada e verdadeira. O êxito da jornada depende de nossa capacidade de nos concentrar no que é essencial e de superar as distrações e os impedimentos”, afirma Morrison (p. 70-71).
É importante também salientar a visão de ser humano que Santo Agostinho tinha, que foi formada a partir de três fontes, segundo Henrique C. de Lima Vaz (63-66): a-) neoplatonismo, a partir de Plotino, Porfírio e Mário Vitorino. Essa influência neoplatônica se mostra principalmente na estrutura do ‘homem interior’ coroada pela mens (o nous dos neoplatônicos), na qual “Deus está presente como interior e superior”, reitera Vaz (p. 65); b-) antropologia paulina, a partir da qual formulou a doutrina do pecado original e da graça, incluindo, ademais, a problemática da liberdade e do livre-arbítrio; c-) a antropologia da narração bíblica da criação, ou seja, o homem como imagem de Deus.

Razão e fé



O caminho do verdadeiro conhecimento – ou da verdadeira filosofia – e do amor à sabedoria para Agostinho viria da moderação (também chamada por Platão de temperança), que protegeria os humanos dos extremos da curiosidade. Assim, não se deveria fazer perguntas ao cosmos (universo) no intuito de se assenhorar dele. Porém, com humildade dos homens – que deveriam conhecer sua limitação e dependência – para uma ascensão ao conhecimento mais puro e verdadeiro. Ou seja, Deus. “Nesse sentido é que se pode concluir que Deus preenche a existência humana à medida que a vida eterna é o destino de toda alma por Ele criada; galgar o pax aeterna é o destino de toda a alma. Assim é que se pode dizer que a alma é a vida do corpo, e que Deus é a vida bem-aventurada do homem”, dizem Bittar e Almeida (p. 220).
Agostinho resgata a metafísica de Platão, com fortes doses da Palavra Evangélica, ao tratar dos problemas éticos, políticos e jusfilosóficos. “Santo Agostinho cristianizou a estrutura platônica ao explorar a tese dualista dos maniqueus – o mundo é composto pelas duas forças do bem e do mal, da luz e das trevas em permanente conflito – e a acusação cética dos acadêmicos – não há como o homem possa chegar a conhecer a verdade absoluta”, comenta Morrison (p. 68).
Platão escrevia que as verdades válidas estariam no mundo das idéias, compreensível por meio da razão, e não no mundo sensível, compreendido pelos sentidos, como esplendidamente retratado no mito da caverna. A fé praticamente tomaria o lugar da razão, com a interpretação de Agostinho. Ou melhor, a razão subordinaria a fé aos seus desígnios. E isso serviria essencialmente para justificar a existência de fatos que a razão não consegue explicar. “Se as entidades fundamentais não podem ser descobertas pela capacidade de investigação do homem, elas devem ser aceitas com base na fé, e o papel da razão é construir estruturas baseadas na confluência da fé (e das coisas que nos são apresentadas através da revelação) e da razão. Fundamentalmente, Deus cria o cosmo e é o último obstáculo a qualquer tentativa de buscar comprovações lógicas da existência; portanto, a verdadeira sabedoria é a sabedoria cristã. A razão deve alinhar-se à revelação e, valendo-se de um instrumental lógico, criar argumentos baseados na segurança das entidades a nós reveladas. Filosofia é teologia”, escreve Morrison (p. 68-69).
Assim como o indivíduo que sai de dentro da caverna, e os olhos são ofuscados pelo Sol (simbolizando a aquisição do conhecimento), o fiel também se vislumbra perante a iluminação divina. “Portanto, para Agostinho a verdade não é uma teoria, como para os gregos, mas é um encontro, um mergulho da alma na fonte da Vida, no oceano da eterna luz. Para Platão o sol é metáfora, para Agostinho é a verdade em pessoa, Deus, única paixão de Agostinho; encontrar a verdade e com ela a felicidade e nelas repousar são uma só realidade. Agostinho exprime tudo isto numa famosa frase: ‘Tu nos fizeste para ti, Senhor, e nosso coração andará inquieto até que não repouse em ti’ (Conf., I, 1)”, comenta Olinto Pegoraro (p. 63).
Mais uma vez, se repete a fórmula: filosofia serva da teologia. Arremata MacIntyre: “Desse modo, a fé que inicialmente move e informa a vontade é anterior à compreensão; o que a compreensão pode fornecer é uma justificação racional por ter inicialmente acreditado ou feito o que a fé determinou, mas tal justificação deve sempre ser retrospectiva. A racionalidade prosprectiva, compreendida em grande parte como Platão a tinha compreendido, é possível para o intelecto informado pela fé, posteriormente informando a vontade que a tenha e que continua a dirigi-la da mesma forma.”


Livre-arbítrio, auto-escravidão e pecado



A busca da verdade divina e a aceitação da fé podem ser associadas ao mito da caverna de Platão: seria a libertação do mundo sensível. Os seres humanos seriam prisioneiros das ilusões e estagnações no próprio corpo. Daí, o papel primordial da fé. “A fé ilumina e permite que façamos as escolhas certas entre os diferentes objetos do desejo, substituindo nosso desejo por coisas terrenas (cupiditas) pelo desejo por coisas de natureza celestial (caritas) – as coisas essenciais. Conhecer Deus é participar da grandiosa narrativa de nossa criação, nossa existência e nosso fim – nossa escatologia”, esclarece Morrison (p. 71).
O mal é fruto do livre-arbítrio, da vontade humana. Já a virtude, por sua vez, não é ato da vontade humana, mas da graça de Deus. “O homem pode optar pela prática do bem, mas não tem o poder espiritual de fazer o bem que escolheu. Ele precisa do auxílio da graça divina”, acentua Morrison (p. 71).
A citação de Alasdair McIntyre (p. 172) pode esclarecer com mais propriedade essa questão: “A vontade humana é o determinante último da ação humana, e a vontade humana é sistematicamente maldirecionada e de tal maneira que não está em seu próprio alcance redirecionar-se. Originalmente, a vontade era dirigida para o amor de Deus, mas, através do exercício de uma liberdade de escolher entre o bem e o mal, Adão escolheu dirigir a vontade para o amor de si, e não para o amor de Deus. Ao agir desse modo, Adão restringiu sua liberdade de escolher o bem e, porque outros poderes humanos precisam da direção da vontade, Adão, a partir de então, não dispunha mais de recursos para recuperar a liberdade. Cada ser humano individual revela, na condição de sua vontade, sua solidariedade com Adão, independentemente da consciência que tem desse fato. Só a graça divina pode salvar a vontade dessa condição.”
Menos inflexível que McIntyre é o posicionamento de Bittar e Almeida. Para eles, o livre-arbítrio permite ao homem a atuação – conforme sua vontade – a favor ou contra a lei divina. A vontade governa o homem, e pode ser usada a favor ou contra si mesmo. Essa orientação deve ser orientada pela governabilidade da potência racional da alma, sendo a razão o princípio motor do comportamento, contendo, inclusive, a idéia de equilíbrio, de prudência nas práticas da vida. O livre-arbítrio, narram Bittar e Almeida (p. 223), deve se orientar pela razão divino, preceitos da lei eterna, inscrita no coração de cada homem. “Ser livre é não só poder deliberar com autonomia, mas sobretudo deliberar iluminado pelo espírito divino, que se busca pela interiorização, caminho em direção a Deus”, comentam Bittar e Almeida (p. 221).
Para Agostinho, a virtude fundamental seria o retorno à liberdade, já o vício fundamental seria o vício da vontade na condição de auto-escravidão, pondera McIntyre (p. 172). Assim, o vício fundamental seria o orgulho, tendo como virtude correspondente a humildade, já que sem esta não há como se ter o amor de Deus. “Ser feliz e sábio são uma e a mesma coisa, ou seja, possuir a sabedoria de Deus. Não nos bens exteriores, não nos bens transitórios, não nos bens corporais se encontra a felicidade, mas no bem da própria alma, ou seja, na contemplação de Deus. Essa sabedoria é espécie de medida, equilíbrio cristão em Deus (diverso do equilíbrio estoico), que previne contra o excesso e a intemperança. A revelação e a graça são os instrumentos para o conhecimento da verdade. O intelecto ganha sua existência com a intervenção da divindade, por meio do Verbum. Quem possui Deus, como bem estável e perfeito, somente este é feliz. Nesse sentido é que se pode falar em beatitude. Qual é a razão de filosofar senão a vontade de conhecer a Verdade que reside no Bem?”, indagam Bittar e Almeida (p. 223-224).

Juízo final, o julgamento supremo



A separação do joio do trigo, quer dizer, daqueles que souberam utilizar o livre-arbítrio segundo ou contra a lei divina, se dá no Juízo Final. Aliás, a distinção entre bem e mal só pode existir se, é claro, existirem o bem e o mal. E a razão seria o meio para orientar o comportamento para o bem, fugindo do mal. Nesse julgamento último, aos bons seria dado o bem supremo e aos maus, o pior, o maio supremo. A justiça divina daria a cada um o que é seu segundo seus próprios feitos, tal como se verifica no Apocalipse de João. “Ao estado de coisas humano, portanto, onde medram os pecados e o destempero comportamental, onde o próprio julgamento vem maculado pela injustiça, onde os vícios e a desordem seculares prevalecem sobre a razão e a virtude, opõe-se o estado de coisas divino, caracterizado pela ordem e justiça constantes. Nesse sentido, na existente e clara oposição entre terreno e transitório, de um lado, e o divino e o perene, de outro lado, reside o essencial da aventura humana. Trata-se de vislumbrar na humanidade um estado passageiro do homem, ou para estágios mais elevados da vida, ou para outros de maior sofrimento ainda. A mediação entre um estado e outro se dará por meio do chamado Juízo Final”, arrematam Bittar e Almeida (p. 226).

Entre dois amores: Cidade de Deus e Cidade dos Homens

A dicotomia platônica entre mundo intelectivo (idéias) e mundo sensível foi reproduzida por Santo Agostinho na obra Cidade de Deus. Agostinho elabora uma alegoria entre duas cidades, Babilônia e Jerusalém. A primeira representa o amor de si próprio (a vida terrena), a segunda, o amor de Deus e até mesmo o desprezo de si (a vida segundo os preceitos divinos). Babilônia simboliza a cidade dos homens. Jerusalém, a cidade de Deus.
E como se exemplificariam esses amores? Pegoraro (p. 68-69) responde: “Na cidade celeste, todas as virtudes nada mais são que um reflexo ou uma modalidade do amor. Assim a prudência é o amor que discerne, pondera e escolhe o melhor caminho para alcançar o supremo fim. A coragem é o amor que suporta, tolera e transpõe as dificuldades, obstáculos e problemas temporais em vista da obtenção da vida eterna feliz: ‘Tudo posso naquele que me fortalece.’ A justiça é o amor que nos mantém na ordem correta das coisas em direção ao supremo ordenador. A humildade é o amor que nos mantém em nossa identidade, em nosso lugar, face a Deus, aos homens e às coisas que compõem a ordem universal. Humildade não é o falso discurso que finge minimizar o homem como miserável e pecador; a verdadeira humildade é aquela que nos mantém em nosso lugar na escala das coisas criadas. Também a cidade terrestre prega o amor e as verdades, isto é, os vícios, que nada mais são que a perversão do amor. Assim a avareza é o vício do homem que deposita mais confiança nas riquezas que passam do que nos bens eternos que não passam. A luxúria é o vício do homem que coloca a beleza e os prazeres da carne acima da Eterna Beleza e da Eterna Alegria. A soberba é o vício da alma que se julga melhor que o próximo, que se basta a si mesma, dispensando até o auxílio divino. Portanto, ‘quem ama perversamente um bem torna-se escravo deste bem’ (Civ., 12, 8).”
Faz-se importante afirmar que em Agostinho, ao contrário de Platão, há uma preocupação de ordem prática. Não investiga somente as coisas do espírito, mas atrela-se aos eventos sociais e políticos, sendo sua doutrina uma orientação e também governo das almas. Há quem entenda, como Michel Villey (p. 107), que Agostinho fez uma crítica à injustiça do Direito Romano. Propôs que se desse a cada um o que é seu, segundo a fórmula romana. Mas como isso seria possível, sem dar a Deus o amor que lhe é devido? Completa Villey (p. 107): “Para Santo Agostinho não existe justiça sem ‘adesão a Deus’. E a justiça é sinônimo de misericórdia (In Os 39, 19).”
O poder temporal é deveras espiritualizado na obra agostiniana, seguindo uma tendência de influência dos chefes espirituais nos rumos de um povo, para conduzi-lo à pax aeterna. Portanto, o poder político deve subordinar-se ao poder divino, cuja interpretação se dará pelos seus legítimos representantes. O Estado seria um meio para a realização da lei eterna, tal como os ideais cristãos favoreceriam o desenvolvimento da ordem divina, pregando uma união gradativa entre a ordem humana e a divina, identificando, também, lei humana com lei divina. “A corrupção da alma humana é que impede o implemento imediato da ordem eterna sobre as coisas humanas. (...) Tem-se, pois, que a política humana deve refletir o anseio de perseguir a junção eterna das almas com Deus, daí o compromisso teocrático do Estado na teoria agostiniana”, asseveram Bittar e Almeida (p. 224).
Devido à constante organização, a vida humana possui algumas estruturas como a casa (domus), a cidade (civitas) e o mundo (orbis terrae). Os males da civilização, causados pelo homem, decorrem da guerra, da desordem, da vontade de dominação. A ignorância das leis eternas levam ao homem cometer tais atrocidades, um conjunto de atos irracionais que refletem desprezo de Deus. Explicam Bittar e Almeida (p. 225): “Esse é interpretado como constitutivo de um estado de coisas, chamado de humano, terreno, que recebe em sua teoria a designação de cidade dos homens (Civitas terrena). A Cidade dos Homens é, em síntese, a reunião dos ímpios (societas ipiorum).
A cidade dos homens, desde sua origem, é marcada pelo pecado original. O seu desvio se deve ao fato de o comportamento humano se corrompeu, ocasionando distanciamento da fonte de vida, Deus. Apesar de a cidade dos homens ser maculada, há uma missão de se conquistar a pax social. Nessa ordem, na qual imperam imperfeitas instituições, estruturas incompletas de governo e leis injustas, há pouco conhecimento sobre as leis eternas. “Não é por outro motivo que Agostinho condena os julgamentos perpretados nas cidades, onde frequentemente os juízos de ignorância dos juízes são a causa da flagelação suplício dos inocentes, imolados por práticas de tortura, por Augustinus consideradas condenáveis. (...) Mais que isso, o pater ecclesiae quer condenar os malefícios das penas e atitudes humanas que depõem contra o semelhante, e torna-se crítico mordaz da tortura e da pena de morte, pois tudo que é humano (sistemas de governo, justiça, etc) ofusca-se diante da contemplação do que é imutável e perfeito (Justiça, Ordem, Bem)”, dizem Bittar e Almeida (p. 225-226).
Jesus Cristo teria fundado a Cidade de Deus (Civitas Dei), a comunidade de fiéis beatos por conhecerem Deus. Lutar contra os inimigos dessa cidade divina é uma função sacrossanta. O fiel deve aproximar o homem de Deus, na tentativa de se fazer reinar também na Terra a Cidade de Deus. Os crentes gozarão dos benefícios obtidos quando se implantar a Cidade de Deus na Terra. Já os ímpios, pelo mau uso do livre-arbítrio, provariam dos malefícios. “A tendência histórica das duas Cidades é o esvaziamento da comunidade terrena (homens que vivem governados pelo desregramento) e a lotação da divina (homens que vivem governados pela vontade de união a Deus), onde tudo se dá não em função do pecado comum, mas da fé comungada por todos, pois a Cidade de Deus glorifica-se ao ver-se preencher por aqueles que não possuíam destino com deus. Em poucas palavras, o destino histórico demonstrará que para os que se encontrarem fora da Cidade de Deus, será a lamúria, a segunda morte. Sobre o que seja o verdadeiro e soberano bem, deve-se dizer: a vida eterna. Sobre o que seja o verdadeiro e soberano mal, deve-se dizer: a morte eterna”, dizem Bittar e Almeida (p. 228).
Neste tópico, finaliza Morrison (p. 75): “Uma verdadeira sociedade é uma associação de seres racionais unidos por um acordo unânime a propósito das coisas que amam. O destino do mundo estava no conflito entre dois tipos de amor e dois tipos de cidades. Em última instância, com a graça de Deus o verdadeiro amor venceria.”

A ordem do amor

A justiça dos gregos antigos resvalava, no geral, por uma ordem cósmica, em que cada coisa estaria no seu devido lugar. A ética do amor de Agostinho se baseia na ordem das coisas criadas e não criadas (ordo rerum), cujo principal ordenador é Deus. Dessa maneira, as coisas menores se subordinam às maiores, as sem vida às com vida, os vegetais aos animais, os animais ao homem. E, por último, o homem se subordina a Deus. Esta é a schala rerum, que vai da matéria sem vida até Deus, fonte de toda a vida. E todas as coisas e seres existentes ocupam o seu devido lugar na escala do universo, isso por determinação divina. “Este ordenamento vale especialmente para o homem; o único ser inteligente e livre, capaz de entender a ordem das criaturas. Este ordenamento é a lei natural, lei intrínseca a cada coisa do mundo criado”, ensina Pegoraro (p. 70).
A ética do amor consiste em amar a Deus e as coisas e seres criados por Deus, lembrando-se sempre que foram criadas por ele. O seu oposto é a idolatria, o amor às coisas e criaturas, apegando-se a elas, sem se referir a Deus. Esse amor pervertido inverte a ordem das criaturas. O amor reto e bom tem uma ordem entre as coisas na sua ordem natural segundo a criação de Deus. A lei natural que ordena a escala natural reflete a lei eterna, a vontade divina de manutenção de uma ordem, sem contrariá-la. Então, a lei natural mantém a ordem do amor (ordo amoris) em respeito à escala das coisas hierarquizada pelo Criador.

Lei humana e lei divina




A dicotomia entre as duas cidades, a do homem e a de Deus, também se reflete na legislação. Para Agostinho, há uma legislação terrena e uma legislação divina. Trata-se de mais uma recorrência ao neoplatonismo. O dualismo de Platão também se faz presente e mostra os contrastes entre uma justiça transitória e imperfeita, tal como a corruptibilidade dos juízos humanos, e uma justiça eterna e perfeita, tal como a incorruptibilidade dos juízos divinos, lecionam Bittar e Almeida (p. 214). A justiça humana se realiza entre os próprios homens, como decisão humana dentro de uma sociedade, tendo como fonte básica a lei humana, ou lei temporal (lex temporalem). A lex temporalem comanda o comportamento humano e não aquilo que pré-existe ao comportamento social.
Então, a lei humana não alcança aquilo que existe anteriormente ao homem, ou seja, Deus, que originou a tudo, o legislador maior do universo. A justiça divina governa tudo, cuja existência ordena todas as coisas, em todo o universo. Sua fonte é a lei divina, ou lei eterna (lex aeternum), que não tem limites temporais para sua execução. Está acima das diferentes legislações sujeitas aos diferentes povos, civilizações e culturas. A lei divina inspira a lei humana, tal como a natureza de Deus inspira o homem. “Nesse sentido, a lei humana também é divina, ou seja, também participa da divindade. Em outras palavras, a fonte última de toda lei humana seria a própria lei divina. Todavia, sua imperfeição, seus desvios, sua incorreção derivam direta e francamente das imperfeições humanas”, apontam Bittar e Almeida (p. 216).
A identificação do mal onde está o mal e do bem onde está o bem depende do alcance do julgamento divino, o que permite separar o justo do injusto. O julgamento divino, com base na lei divina, é perfeito, versam Bittar e Almeida (p. 216): “Deus separa os bons dos maus e lhes confere o que merecem (separat inter bonos et malos, et sua cuique tribuit); nisso reside o verdadeiro sentido da justiça, e esta parece ser a esperança de todo homem justo.”
A lei divina imprime-se no espírito do homem, inspirando-o a elaborar leis humanas justas. Porém a pobreza de espírito humana faz com que as leis humanas sejam imperfeitas, corruptas, incorretas e injustas. “O homem existe, e sua natureza é corrupta; é nesse sentido que se pode dizer que o homem se desgarrou da sua origem. Não há aí mero determinismo informando a teoria agostiniana, mas uma profunda consciência de que o livre-arbítrio, sede da deliberação autônoma do homem, é seu motivo maior de queda espiritual”, arrematam Bittar e Almeida (p. 216-217).
O estado de coisas e o estatuto da lei humana são falíveis, assim como os homens, instituições governos, julgamentos, ordenações, organizações, comportamentos e leis. A justiça humana, afirmam Bittar e Almeida (p. 217), é viciada desde o início (ab origine). As orientações entre a lei humana e a lei eterna também são diferentes, pois seus fundamentos são diferentes.
A lei eterna visa o autocomando da alma, para uma aproximação de Deus. Essa lei comanda o desprendimento das coisas mundanas e temporais, purificando o seu amor para as coisas eternas. Governar-se é deixar-se governar pela lei eterna. Já a lei temporal não se preocupa necessariamente com o governo da alma nos trilhos da virtude, porém, com “o governo da alma fora da ilegalidade e da transgressão”, escrevem Bittar e Almeida (p. 217), recriminando os crimes para que se promova a paz social.
A lei temporal é recurso auxiliar na organização social. É indispensável para regulamentar a conduta humana. E como o estado de coisas humano é transitório, essas leis também são transitórias, daí as constantes mudanças. “Essas mudanças podem vir, de um lado, a favor da própria comunidade, pois o que era lei podia não ser justo, e o que se tornou lei passou a instituir o justo, ou, de outro lado, em desfavor da comunidade, ou seja, passando-se de um estado de justiça inscrita na lei para outro estado de injustiça inscrita na lei. (...) (Para Agostinho) Conceber o Direito dissociado da justiça (divina) é conceber um conjunto de atividades institucionais humanas que se encontram dissociadas dos anseios de justiça”, dizem Bittar e Almeida (p. 218).
Por isso, para o governo ser considerado como justo, há necessidade de se pautar pela lei divina. E só se pode considerar uma república só se esta for organizada segundo o verdadeiro Direito, nos ditames da verdadeira justiça. Agostinho segue a orientação de Cícero, na qual não existe república sem ordem, ordem sem Direito e Direito sem justiça. Se essa ordem for quebrada, quebra-se a ordem de Deus, cometendo injustiça ao se atribuir algo a quem não é merecedor. “A justiça, portanto, tem a ver com ordem, da razão sobre as paixões, das virtudes sobre os vícios, de Deus sobre os homens”, finalizam Bittar e Almeida (p. 220).


Leia mais:

BITTAR, Carlos Eduardo Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 8. ed. rev. aum. São Paulo: Atlas, 2010.
LEITE, Flamarion Tavares. Manual de Filosofia Geral e Jurídica – das origens a Kant. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991.
MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito – dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história. Petrópolis: Vozes, 2006.
VAZ, Henrique C. L. Antropologia filosófica I. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2000.
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito – definições e fins do Direito, os fins e os meios do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Linguagem e humanidade


Prof. Ms. Roger Moko Yabiku


Como é célebre, o filósofo Aristóteles dizia que o homem é um animal político, que só se realiza e se torna propriamente humano na cidade-estado (pólis). Isso se dá somente porque o homem possui o dom da linguagem. “Os outros animais, escreve Aristóteles, possuem voz (phoné) e com ela exprimem dor e prazer, mas o homem possui a palavra (logos) e, com ela, exprime o bom e o mal, o justo e o injusto. Exprimir e possuir em comum esses valores é o que torna possível a vida social e política, e, dela, somente os homens são capazes”, ensina Marilena Chauí (p. 147).
Citando o filósofo franco-suíço, Jean-Jacques Rousseau, no livro “Ensaio sobre a origem das línguas”, Chauí (p. 148) diz que a palavra diferencia os homens dos animais e a linguagem, as nações entre si. Para o linguista Hjelmslev, cita Chauí (p. 148), a linguagem é inseparável do homem, sendo o instrumento que lhe modela o pensamento, sentimentos, emoções, esforços, vontade e atos.
Trata-se a linguagem, portanto, de uma forma propriamente humana da comunicação, da relação com o mundo e com os outros, da vida social e política, do pensamento e das artes, define Chauí (p. 148).
Relembrando Platão (Fedro), Chauí (p. 148) diz que a linguagem é um phármakon, uma poção com três significados: remédio, veneno e cosmético. É remédio para o conhecimento (pelo diálogo se descobre a ignorância e se aprende com os outros). É veneno se se faz aceitar opiniões fáceis, ligeiras e sem reflexão, sem que se busque a sua verdade. “Enfim, a linguagem pode ser cosmético, maquiagem ou máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras”, explica Chauí (p. 148).
A linguagem estruturada permite pensar e comunicar o pensamento pela fala ou pela escrita. A linguagem verbal (falada ou escrita) é a que nomeia objetos, forma conceitos e os articula coerentemente. Porém, não é o único tipo de linguagem.
Define-se linguagem, segundo Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins (p. 30), como um sistema de signos (numa coisa que está em lugar de outra, sob algum aspecto). Signo seria algo que está no lugar do objeto que representa. Essa representação pode assumir variados aspectos, segundo uma relação de semelhança entre o signo e o objeto representado.

Três tipos de signo




Aí, se faz preciso discriminar três tipos de signos, dizem Aranha e Martins (p. 30-31): a-) relação de semelhança – signo do tipo ícone. Ex. fotografia, palavra onomatopaica (bem-te-vi); b-) relação de causa e efeito – uma relação que afeta a existência do objeto ou é por ela afetada, aí, o signo é do tipo índice. Ex. nuvens ou chão molhado indicam chuva, fumaça ou cheiro de queimado indicam fogo, sinais matemáticos ( +, -, x e /) ao lado de números indicam operações, febre indica uma doença; c-) relação arbitrária – signo estabelecido por convenções sociais, o símbolo. Ex. cor preta é luto no Ocidente, mas no Oriente é o branco. Só os seres humanos entendem símbolos. Os animais só são capazes de entender ícones e índices. “A linguagem é um sistema simbólico. O ser humano é o único animal capaz de criar símbolos, isto é, signos arbitrários em relação ao objeto que representam e, por isso mesmo, convencionais, ou seja, dependentes de aceitação social”, narram Aranha e Martins (p. 33).
Além da linguagem verbal, há outros tipos de linguagem: linguagens matemáticas, linguagens de computador, línguas diversas, linguagens artísticas (arquitetônica, musical, pictórica, escultórica, teatral, cinematográfica, etc), linguagens gestuais, linguagens da moda, linguagens espaciais, comentam Aranha e Martins (p. 31).
A linguagem é uma das principais ferramentas para se formar o mundo cultural, já que permite transcender a experiência. Ao se dar um nome a qualquer objeto da natureza, explicam Aranha e Martins (p. 33), esse ato o diferencia dos demais que o cercam. Passa a existir para a consciência e se as outras pessoas também aceitarem esse nome para o objeto, se estabelece um consenso que possibilita a comunicação.

Linguagem, mito e razão

É a linguagem produto da razão, já que só pode existir se houver racionalidade. “O nome tem a capacidade de tornar presente para a nossa consciência o objeto que está longe de nós. (...) Não precisamos mais da existência física das coisas. (...) Pela linguagem o ser humano deixa de reagir somente ao presente, ao imediato; passa a poder pensar o passado e o futuro e, com isso, a construir o seu projeto de vida. (...) Pelas palavras, podemos transmitir o conhecimento acumulado por uma pessoa ou sociedade. Podemos passar adiante esta construção da razão que se chama cultura”, explicam Aranha e Martins (p. 33).
A linguagem pode conter a fantasia do mito (narrativa) ou a sobriedade da razão (logos). “Segundo Aristóteles, o ser humano é um animal racional, ou seja, um ser capaz de raciocínio. Mas o que quer dizer raciocinar? Raciocinar quer dizer dar razões, isto é, justificações coerentes e dotadas de sentido, numa palavra ‘argumentar’. A capacidade de raciocinar deve ser exercitada e treinada. Em todas as épocas da história o sono da razão tem gerado monstros”, afirma Carlo Penco (p. 58).
A linguagem é deveras presente nos mitos e nas religiões. Mythos, em grego, é narrativa. Uma narrativa sobrenatural sobre como os seres humanos organizam a realidade e a interpretam, principalmente se as palavras são pronunciadas em momentos especiais (sagrados ou relação com o sagrado).
Tem uma força realizadora e simbólica, mormente nos ritos religiosos. A linguagem, por “encanto”, une sagrado e profano, traz a divindade e as forças do além para o mundo, leva os humanos até o sagrado. E não raro profetas ou oráculos traduzem as comunicações entre deuses e homens.
Algumas palavras também podem ser proibidas. Seu uso pode causar furor, ou mesmo mancomunar o pronunciante com alguma impureza. Alguns exemplos são os “tabus”.
Comenta Chauí (p. 149): “(...) as palavras são núcleos, sínteses ou feixes de significações, símbolos e valores que determinam o modo como interpretamos as forças divinas, naturais, sociais e políticas e suas relações conosco”.
Por outro lado, a linguagem enquanto logos sintetiza três idéias: fala/palavra, pensamento/idéia e realidade/ser. Exprime o pensamento que conhece o real. É a palavra-pensamento compartilhada (diálogo e lógica). “Se, como vimos, do lado do mythos desenvolve-se a palavra mágica e encantatória, do lado do logos desenvolve-se a linguagem como poder de conhecimento racional. Agora, as palavras são conceitos ou idéias, estando referidas ao pensamento, à razão e à verdade”, exemplifica Chauí (p. 149-150).


Origem natural ou convencional?

E de onde se origina a linguagem? É natural ou convencional? Chauí (p. 150) explica: “a linguagem como capacidade de expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma aparelhagem física, anatômica e fisiológica que lhes permite expressarem pela palavra, mas as línguas são convencionais, isto é, surgem de condições históricas, geográficas, econômicas e políticas determinadas, ou, em outros termos, são fatos culturais”.


Leia mais:

ARANHA, M.L.A.; MARTINS, M.H.P. Filosofando. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003.
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006.
PENCO, C. Introdução à filosofia da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2006.