domingo, 28 de fevereiro de 2010

Immanuel Kant: leis naturais e leis morais


Prof. Ms. Roger Moko Yabiku



O prussiano Immanuel Kant fez algumas afirmações importantes acerca do conhecimento, em “Fundamentação da metafísica dos costumes” (1785), na qual defendeu que a liberdade seria objeto de estudo da filosofia moral (ética). A ética, em Kant, tinha foco nas leis da liberdade, enquanto a física, nas leis da natureza (ver nota de fim 1) (ou leis da necessidade). Kant (Metafísica dos Costumes. Bauru: Edipro, 2003. p. 56) explica: “Numa outra parte foi demonstrado que, no que tange à ciência natural, a qual diz respeito a objetos sensorialmente externos, é preciso contar com princípios a priori e que é possível, com efeito necessário, pré-estabelecer um sistema desses princípios, chamado de uma ciência metafísica da natureza, para a ciência natural aplicada a experiências particulares, ou seja, à física. Estes princípios tem que ser originados de bases a priori para que tenham validade universal no sentido estrito. Mas a física (ao menos quando se trata de manter suas proposições isentas de erro) é capaz de admitir muitos princípios como universais com base na evidência da experiência. Assim, Newton supôs, com base na experiência, o princípio da igualdade da ação e reação na influência recíproca dos corpos e mesmo o estendeu a toda a natureza material. Os químicos vão ainda além e baseiam suas leis mais universais da combinação e separação das substâncias devido às suas próprias forças inteiramente na experiência, e confiam a tal ponto na universalidade e necessidade dessas leis que não temem detectar um erro nos experimentos realizados em conformidade com elas.”
Kant (p. 56-57) prossegue: “Com as leis morais, porém, é diferente. Retêm sua força de leis somente na medida em que se possa vê-las como possuidoras de uma base a priori e sejam necessárias. Com efeito, conceitos e juízos sobre nós mesmos e nossas ações e omissões não têm significado moral algum, se o conteúdo deles puder ser aprendido meramente a partir da experiência. E caso alguém se permitisse ser desviado, transformando alguma coisa proveniente dessa fonte em um princípio moral, correria o risco de cometer os erros mais grosseiros e perniciosos.”
Como em Hobbes, Locke e Rousseau, Kant viu na problemática da liberdade a questão primordial para definir o indivíduo, suas relações e a constituição da sociedade política. As leis da liberdade, segundo Kant, poderiam ser dividas em leis internas (relativas ao forum internum do indivíduo) e leis externas (relativas ao forum externum). Essa divisão, aliás, deu nova dimensão ao jusnaturalismo, pois delineou os limites do poder político e afirmou a inviolabilidade do indivíduo (ver nota de fim 2), além de diferenciar a legislação moral da legislação jurídica e, conseqüentemente, as ações morais das ações jurídicas. Em qualquer dessas duas legislações, Kant, como Rousseau, salientou que liberdade é agir segundo as leis (ver nota de fim 3):

“Cada coisa na natureza atua segundo certas leis. Só um ser racional possui a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, por princípios, ou, só ele possui uma vontade. Se a razão determina infalivelmente a vontade, então as ações de tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, ou seja, a vontade é a faculdade de não escolher nada mais que a razão, independentemente da inclinação: conhece-a como praticamente necessária, quer dizer, como algo bom.” (FMC, p. 43)

O filósofo de Königsberg desenvolveu sua filosofia política, moral e jurídica em torno da idéia de que as pessoas são seres morais, que deviam organizar-se “segundo o Direito, adotar a forma republicana de Governo e estabelecer a paz universal, porque tais comandos são a priori da razão” (ver nota de fim 4). A doutrina do imperativo categórico delineou o caráter deontológico da filosofia moral e política kantiana. De acordo com essa doutrina, toda norma moral teria a forma de um imperativo categórico (nota de fim 5), que contém um comando que prescreve uma relação entre um “dever ser” (sollen), definida objetivamente pela razão, e os móveis humanos, de origem subjetiva que não conduziriam a fortiori à realização do fim moral prescrito (nota de fim 6). Kant definiu o imperativo categórico assim: “Age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” (nota de fim 7) Em outros termos, Kant dizia que a natureza racional existia como fim em si mesma. Dessa idéia, Kant constatou que, devido à sua universalidade, as normas morais que regem o comportamento seriam elaboradas pelos seres humanos, somente enquanto seres racionais. Cada homem e a humanidade seriam fins em si mesmos, como prescrito na formulação do imperativo prático: “Age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” (nota de fim 8) Aqui, Kant deu destaque à dignidade (nota de fim 9) do indivíduo, demonstrando que este seria o fundamento do seu direito inato à liberdade, que, tal como visto anteriormente, seria agir segundo as leis, num prisma objetivo:

“Todo os seres racionais estão, pois, submetidos a essa lei que ordena que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si. Decorre daí, contudo, uma ligação sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns, isto é, um reino que, justamente porque essas leis têm em vista a relação desses seres uns com os outros como fins e meios, pode ser chamado de reino dos fins (desde que não passe de um ideal).
Um ser racional pertence ao reino dos fins na condição de membro quando nele é legislador universal, ainda que igualmente submetido a essas leis. Pertence-lhe na condição de chefe quando, como legislador, não está submetido à vontade de um outro. O ser racional tem de se considerar sempre como legislador em um reino de fins possível pela liberdade da vontade, seja como membro, seja como chefe. Mas o lugar desse último não o pode assegurar só pela máxima da sua vontade, mas tão-somente ao se fazer um ser totalmente independente, sem necessidade nem restrição de uma faculdade adequada à vontade. (...) O dever não pertence ao chefe no reino dos fins, mas sim a cada membro e a todos em igual medida.” (FMC, p. 64)



Podemos estabelecer um paralelo um pouco mais preciso sobre a diferença entre a legislação (ação) moral e a legislação (ação) jurídica, a partir da primeira parte da “Metafísica dos costumes”, intitulada de “Doutrina do Direito” (1797). No quesito formal, distinguem-se moralidade e legalidade. A ação moral em Kant, segundo Bobbio, teria três requisitos fundamentais:

“1-) ação moral é a realizada não para obedecer a uma certa atitude sensível, a um certo interesse material, mas somente para obedecer à lei do dever. Existem ações que aparentemente são honestas, mas não podem ser chamadas morais, porque são cumpridas por impulsos diversos daquele do cumprimento do dever (...);
2-) ação moral é aquela que é cumprida não por um fim, mas somente pela máxima que a determina. Em outras palavras, a ação moral não deve ser determinada por um objeto qualquer da nossa faculdade de desejar (por exemplo, pelo fim da felicidade, ou da saúde, ou do bem-estar), mas unicamente pelo princípio da vontade;
3-) a ação moral é aquela que não é movida por outra inclinação a não ser o respeito à lei. Na conduta moral, cada impulso subjetivo deve ser excluído; o único impulso subjetivo compatível com a moralidade é o sentido de respeito à lei moral, que deve vencer qualquer outra inclinação.” (Bobbio, 2000, p. 87-88)

A ação moral seria cumprida por dever, sendo inadmissível que tenha sido executada devido a uma inclinação ou interesse que seja diferente do respeito ao dever, sendo caso da legislação moral, portanto, demonstração de moralidade. Quando as ações se referissem à exterioridade, de simples conformidade da ação com a Lei, tratava-se da legislação jurídica (Direito), ou seja, um caso de legalidade. “E então se diz que a simples conformidade da ação externa com as leis jurídicas constitui a sua legalidade; sua conformidade com as leis morais é sua moralidade.” (nota de fim 10) Dentro deste esquema de dualidade, aquelas que fossem externamente promulgadas constituiriam o Direito. (nota de fim 11)
Tanto as leis morais quanto as jurídicas estabeleceriam deveres, mas só a estas poderiam exigir seu cumprimento coativamente, embora ambas tenham fundamento na vontade. Se na relação moral, havia responsabilidade do homem consigo mesmo, na relação jurídica, havia preocupação na relação externa com o outro. Com a mesma argumentação para definir a ação moral, Kant diferenciou a legislação interna da legislação externa, seguindo a tradição do jusnaturalismo e iluminismo alemão. (nota de fim 12) Ampliando esse raciocínio, diríamos que a liberdade teria dois significados, em Kant, a liberdade interna (moral) e a liberdade externa (jurídica). “Por ‘liberdade moral’ deve ser entendida, segundo Kant, a faculdade de adequação às leis que a nossa razão dá a nós mesmos; por ‘liberdade jurídica’, a faculdade de agirmos no mundo externo, não sendo impedidos pela liberdade igual dos demais seres humanos, livres como nós, interna e externamente.” (nota de fim 13)
Na liberdade interna, ou moral, versava-se sobre uma relação do indivíduo consigo mesmo (consciência). Na liberdade externa, jurídica, dispunha-se de uma relação do indivíduo com os outros, na qual podia ser responsabilizado por uma ação diante dos outros, coletivamente considerados (o Estado representa essa vontade coletiva), que podiam compeli-lo a assumir tal responsabilidade. Na moral, embora a liberdade fosse considerada internamente, os outros não seriam ignorados por completo, seriam apenas vistos como objetos – ou referencial à ação – cuja valoração moral independeria de uma contestação. Por outro lado, no Direito, os outros não seriam objetos, mas sujeitos que exigiriam que o indivíduo cumprisse uma ação. Aí, notamos a figura da relação jurídica, um nexo de reciprocidade entre o dever (cumprir a Lei) e o direito como uma faculdade subjetiva de compelir ao cumprimento. (nota de fim 14)
A diferenciação entre moral e Direito teve também como critério os conceitos de autonomia e heteronomia. Autonomia seria a faculdade de se autolegislar, daí, a vontade moral seria uma vontade autônoma, por excelência. Ou seja: “A autonomia da vontade é a constituição da vontade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer).” (nota de fim 15) Desse conceito, definiu o de heteronomia: “Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não na aptidão de suas máximas para sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos seus objetos, o resultado é sempre a heteronomia. Não é, pois, a vontade que dá a lei a si mesma, mas sim o objeto que por sua relação com a vontade dá a essa Lei.” (nota de fim 16)
O Direito, portanto, assumiu destaque principal na questão da formação e regulação do Estado (representante da vontade coletiva), em Kant, pois lidava com as relações exteriores e práticas de uma pessoa com outra, desde que houvesse uma influência (mediata ou imediata) de uma sobre outra; não indicava relação de desejos, porém, relação de arbítrios - de um agente para com outro; e a discussão se alentava tão somente sobre a forma e não sobre a matéria do arbítrio, ou seja, sobre o arbítrio das partes no aspecto da liberdade, de modo que a ação de um não constituísse empecilho à liberdade do outro, como prescrito por uma Lei geral. (nota de fim 17) Kant definiu o princípio universal do Direito: “É justa toda ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis universais.” (nota de fim 18)
Nosso próximo passo é descrever a passagem do estado de natureza para o Estado Civil e sua evolução em torno do Direito Privado e do Direito Estatal (ver nota de fim 19), no contratualismo kantiano. O estado de natureza, para Kant, é o estado não-jurídico. As Leis Naturais derivariam de princípios a priori, não requerendo promulgação pública, constituindo o Direito Privado. Já as Leis Positivas dariam origem ao Direito Estatal, expressando a deliberação dos legisladores, representando a vontade geral do povo, unificada na sociedade civil. (ver nota de fim 20) Esta incompatibilidade, porém, seria apenas aparente, pois os Direitos Naturais, derivados de princípios a priori de uma Constituição Civil, não poderiam ser atacadas pelas Leis Positivas. (nota de fim 21)



A distinção entre Direito Privado, ou dos Privados, como prefere Bobbio, e o Direito Estatal seria mais no âmbito racional que empírico. Na primeira esfera, não haveria imposição de uma autoridade superior e os indivíduos isolados travariam as relações jurídicas, como num estado de natureza; na segunda, as relações jurídicas entre os cidadãos, ou entre os cidadãos e o Estado, seriam sistematizadas e reguladas por uma autoridade superior, configurando uma característica própria do Estado Civil. (nota de fim 22) Os membros reunidos numa sociedade civil seriam chamados de cidadãos, que teriam algumas faculdades indissociáveis dessa condição, como: a liberdade legal de só obedecer às Leis que tivessem dado seu sufrágio; a igualdade civil, de não reconhecer autoridade superior entre os seus pares, exceto daquele que estiver em posição de exigir juridicamente desde que também pudesse ser obrigado; a independência civil de ser devedor de sua existência e conservação, na sociedade civil, ser oriunda dos seus próprios direitos e faculdades e não de outra pessoa, possuindo personalidade civil que não poderia ser delegada a outrem, nos assuntos de caráter jurídico. (nota de fim 23) Observemos que, em Kant, a sociedade civil era vista como sendo daqueles que se relacionavam em conformidade com as Leis promulgadas publicamente; em sua visão de um todo, com relação aos individuais, a sociedade civil foi denominada de Estado. Sobre a transição do estado de natureza para o Estado Civil, Kant escreveu:

“É preciso sair do estado natural, no qual cada um age em função de seus próprios caprichos, e convencionar com todos os demais (cujo comércio é inevitável) em submeter-se a uma limitação exterior, publicamente acordada, e por conseguinte entrar num estado em que tudo o que deve ser reconhecido como Seu de cada qual é determinado pela lei e atribuído a cada um poder suficiente, que não é do indivíduo e sim de um poder exterior. Em outros termos, é preciso antes de tudo entrar num Estado Civil.” (DD, p. 150-151)

Se, em Rousseau, a sociedade civil corrompia os homens, que, no estado de natureza, seriam inocentes, em Kant, os seres humanos teriam potencial tanto para o bem quanto para o mal. Ele via os homens como seres fenomenais – determinados pela natureza – e como seres nomenais ou inteligentes – determinados pela escolha ou vontade. O contrato social kantiano, dessa maneira, seria uma idéia a priori da razão pura prática, que, sem a celebração do mesmo, seria impossível uma sociedade civil. Independentemente do regime de Governo adotado, portanto, o Estado seria algo que poderia ser desfrutado somente por seres físicos e inteligentes, cujo acordo foi realizado por pessoas livres e iguais. A explicação disso estaria no fato de que a razão seria uma forma de pensar universal, interpessoal e imparcial, não se restringindo a um ou outro indivíduo, mas repousando como base do “pensamento coletivo”. O contrato social criaria uma vontade geral unificada, que justificaria o uso da coerção legal, aproximando Kant do pensamento de Rousseau, no sentido de os cidadãos, no Estado Civil, disporem de uma liberdade com limites, que estaria ligada, inevitavelmente, com a possibilidade de punição, em caso de infrações, como maneira de se evitar comportamentos que pudessem interferir na cooperação social pacífica (ver nota de fim 24):

“Entre todos os contratos pelos quais se liga uma multidão de homens se religa numa sociedade (pactum sociale), o contrato que entre eles estabelece uma constituição civil (pactum unionis civilis) é de uma espécie tão peculiar que, embora tenha muito em comum, quanto à execução, com todos os meios (que visam a obtenção em comum de qualquer outro fim), se distingue, no entanto, essencialmente de todos os outros no princípio da sua instituição (constitutionis civilis). A união de muitos homens em vista de um fim (comum) qualquer (que todos têm), encontra-se em todos os contratos de sociedade; mas a união dos mesmos homens entre si mesmos é um fim (que cada qual deve ter), por conseguinte, a união em toda a relação exterior dos homens, em geral, que não podem deixar de se enredar em influência recíproca, é um dever incondicionado e primordial: uma tal união só pode encontrar-se numa sociedade enquanto ela radica num Estado Civil, isto é, constitui uma comunidade (gemein Wesen). Ora o fim, que em semelhante relação externa é em si mesmo um dever e até a suprema condição formal (conditio sine qua non) de todos os restantes deveres externos, é o Direito dos homens sob leis públicas de coação, graças às quais se pode determinar a cada um o que é seu e garanti-lo contra toda a intervenção de outrem.” (PP, p. 73-74)

O consentimento dos cidadãos (como seres iguais), como fundamento do contrato social que deu origem à sociedade civil e ao Estado, seria também justificativa para que os contratantes vigiassem as ações dos legisladores e outros agentes públicos no controle da máquina estatal. Então, os legisladores e demais agentes públicos deveriam assegurar a maior discussão pública possível das políticas e novas Leis, no entanto, isso seria mais bem implementado se os legisladores e agentes públicos estimulassem o maior esclarecimento do seu povo, permitindo maior acesso à educação nos moldes acadêmicos. Para Kant, um reino filosófico, ou acadêmico, independente seria vital na sua concepção de Estado. Se o Estado foi originado por um contrato social, era evidente que a vigilância sobre o mesmo deveria ser realizada de maneira crítica. (ver nota de fim 25)

* Texto baseado na dissertação de mestrado “A justiça além do discurso jurídico: ensaio sobre o neocontratualismo de John Rawls”.


Notas de fim

1. Observamos que aqui as leis da natureza seriam aquelas que descrevem os fenômenos do universo natural não tendo a mesma significância de Lei Natural (que prescreveriam comportamentos enunciados na razão), seja na teoria de Hobbes ou de Locke, interpretou Norberto BOBBIO, Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant, p. 86.
2. Reginaldo Castro de ANDRADE, Kant: a liberdade, o indivíduo e a república, in: Francisco C. WEFFORT (org.), Os clássicos da política, v. 2, p. 51; “Os membros reunidos de tal sociedade (societas civillis), isto é, de uma cidade para a legislação, chamam-se cidadãos (cives) e seus atributos jurídicos inseparáveis de sua natureza de cidadão são: primeiro, a liberdade legal de não obedecer a nenhuma outra Lei além daquelas a quem tenham dado seu sufrágio; segundo, a igualdade civil, que tem por objeto o não reconhecer entre o povo nenhum superior além daquele que tem a faculdade moral de obrigar juridicamente da mesma maneira que, por sua vez, pode ser obrigado; terceiro, o atributo da independência civil, que consiste em ser devedor da sua existência e de sua conservação, como membro da República, não ao arbítrio de outro no povo, mas sim aos seus próprios direitos e faculdades, e por conseguinte em que a personalidade civil não possa ser representada por nenhum nos assuntos de direito.” (DD, p. 153, grifos nossos)
3. “This is Kant’s rendering of Rousseau’s statement in the Social Contract, Book I, Chapter 8, paragraph 3: ‘car l’impulsion du seul appétit est esclavage, et l’obéissance a la loi qu’on s’est prescrite est liberté’.” (HMP, p. 204).
4. Reginaldo Castro de ANDRADE, Kant: a liberdade, o indivíduo e a república, in: Francisco C. WEFFORT (org.), Os clássicos da política, v. 2, p. 51; FMC, p. 42.
5. As aulas de John Rawls, das quais podemos tirar lições valiosas sobre o imperativo categórico de Kant, foram sistematizadas e publicadas em HPM, p. 163-216.
6. FMC, p. 52.
7. Ibid., p. 51.
8. Ibid., p. 65.
9. Ibid., p. 65.
10. DD, p. 23.
11. Milton Meira do NASCIMENTO, Rousseau: da servidão à liberdade, in: Francisco C. WEFFORT (org.), Os clássicos da política, v. 1, p. 51-56; DD, p. 30-31.
12. Norberto BOBBIO, Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant, p. 93.
13. Ibid., p. 95-96.
14. Ibid., p. 97-100.
15. FMC, p. 70.
16. Ibid., p. 71.
17. DD, p. 44-45.
18. Ibid., p. 46.
19. Preferimos utilizar o termo “Direito Estatal”, em vez de “Direito Público”. Entendemos “Direito Público” como sistema de normas de “Direito Estatal” que envolvem – em geral – a constituição e regulação do Estado e suas relações com os particulares, a exemplo do Direito Constitucional, do Direito Administrativo, do Direito Penal, entre outros. “Direito Estatal” seria o Direito Positivo elaborado pelo Estado, conforme processo legislativo, que abrangeria o “Direito Público” e o “Direito Privado”. Note-se que, em Kant, muitas vezes “Direito Privado” é uma referência ao Direito que pré-existia ao Estado (Direito Natural), nem sempre coincidindo com o “Direito Privado Positivo”, cuja principal ramificação é o Direito Civil.
20. Milton Meira do NASCIMENTO, Rousseau: da servidão à liberdade, in: Francisco C. WEFFORT (org.), Os clássicos da política, v. 1, p. 56; DD, p. 55-56.
21. DD, p. 77-79.
23. Norberto BOBBIO, Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant, p. 138.
23. DD, p. 153.
24. Howard WILLIANS, Kant on the social contract, in: David BOUCHER & Paul KELLY (org.), The social contract from Hobbes to Rawls, p. 134-138.
25. Ibid., p. 140.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Aristóteles de Estágira, preceptor de Alexandre Magno


Prof. Ms. Roger Moko Yabiku



É indiscutível a presença e a influência de Aristóteles (384-322 a. C.) na estrutura do pensamento ocidental: escreveu sobre ética, poética, política, física, metafísica, biologia e lógica. Ele nasceu em Estágira, cidade de população grega na Macedônia. Pelo fato de seu pai Nicômaco, médico do reis macedônicos Amintas II e Filipe II, ser bem relacionado, Aristóteles cresceu num ambiente de boas condições científicas e culturais. Carlos Eduardo Bianca Bittar (p. 14-15) conta que Aristóteles foi educado nos moldes da medicina empirista, na tradição da escola hipocrática fundada por Cós em V a.C., o que estabeleceria os pilares de toda sua filosofia: “A detida análise da realidade, a observação da natureza (physis) e dos fenômenos (phainomena), a dissecação da vida e os estudos de cunho biológico transportaram-se para os campos político e ético, operando-se em profunda inovação nos métodos científicos adotados até o momento. A terapia do corpo (soma) doutrinada por Hipócrates fundiu-se idealmente com a terapia da alma (psyché) doutrinada por Sócrates resultando-se numa harmônica combinação dos métodos indutivo e dedutivo de conhecimento.”


O ‘leitor’

Aristóteles optou pela formação a exemplo da paidéia sofista de Atenas. E, a partir daí, conheceu as obras de Platão, que posteriormente seria seu mestre. Após a morte de seu pai, o tutor de Aristóteles, Próxeno de Atarne, enviou-o a Atenas, quando tinha 17 anos, para que pudesse aprimorar seus conhecimentos. Quando chegou à Academia, onde Aristóteles permaneceu por 20 anos (como aluno e depois como professor), Platão já tinha 60 anos.
O jovem Aristóteles não era reconhecido como cidadão de Atenas. Pertencia à classe dos metecos, não podendo participar da vida pública. Porém, a Academia não fazia distinção para a seleção de alunos. Geralmente, os metecos dedicavam-se ao comércio, mas o estagirita preferiu incorporar-se aos grupos de outros estudiosos, como outros estrangeiros em Atenas. Aristóteles era metódico, disciplinado e obstinado em seus estudos.
Os gregos eram acostumados à beleza da palavra, então, eram mais acostumados à expressão oral, que à leitura, seja nas lições, quanto no social (teatro e política), ensina Bittar (p. 18). O próprio Platão apelidou-o, por isso, de “Leitor”, pois Aristóteles preferia ler, por si mesmo, as obras científicas e literárias, o que seria uma das suas inovações metodológicas, como busca da verdade.


Alexandre Magno, aluno de Aristóteles




As cidades-estado gregas tiveram várias guerras entre si no século IV a.C. Com o crescimento do reino da Macedônia, nas mãos de Filipe II, Demóstenes – líder em Atenas – acirrou-se a desconfiança aos macedônicos, em nome de um nacionalismo extremado. A Academia, após a morte de Platão, ficou sob a direção do seu sobrinho Eusesipo. Aristóteles jamais poderia suceder Platão como diretor da Academia, afinal estrangeiros não poderiam ter propriedades imóveis em Atenas.
Ele saiu de Atenas – com Xenócrates – para Assos, onde Hérmias era o tirano. Lá, com outros alunos de Platão – Corisco e Erasto – tornou-se conselheiro do governante. Foi uma oportunidade de aprimorar ainda mais seus estudos e de se distanciar da obra do seu mentor. E lá se foram três anos. Teofrasto tornou-se aluno de Aristóteles e juntos partiram para Mitilene (345 a.C.), uma das mais importantes cidades da ilha de Lesbos, na Ásia Menor. Continuou a ensinar e casou-se com Pítias, sobrinha do tirano Hérmias.
Em 343 a.C., Filipe II chamou Aristóteles a Pela (capital da Macedônia), para uma missão importante: educar seu filho Alexandre, para que seu espírito se amoldasse pelo amor à virtude e à grandeza. Filipe II conquistou toda a Grécia, menos Esparta, em 338 a.C, pondo fim às guerras entre as cidades-estado (pólis), que foram submetidas ao poder central imperial. O rei faleceu dois anos depois. Alexandre ascendeu ao trono do império, expandindo-lhes as fronteiras até o Oriente. Ficou conhecido como Alexandre Magno: Alexandre, o Grande.
Aristóteles voltou a Atenas em 335 a.C. Fundou sua escola, o Liceu, por esta estar perto de um templo dedicado a Apolo Lício. Apesar do domínio macedônico, em Atenas, Aristóteles ainda era um estrangeiro e não poderia, jamais, ser proprietário do imóvel da sua própria escola. Dirigiram-se para lá vários alunos que abnegadamente realizaram numerosos estudos empíricos. Escreve Bittar (p. 29): “As despesas para a conservação da descola advinham das contribuições dos particulares e da corte macedônica, uma vez que dos discípulos nada se cobrava. Neste sentido, muito auxílio trouxeram as contribuições de Alexandre Magno, que, acompanhado por grande número de estudiosos, enviava, como testemunho de afinidade e respeito ao tutor de sua juventude, abundante material das longínquas regiões asiáticas que desbravava em nome da Macedônia.”


Aristóteles se decepciona com Alexandre

Apesar de ainda admirador de Aristóteles, Alexandre Magno deixou-se levar pelas paixões e seu ímpeto conquistador, em detrimento da razão. Fundiu as culturas greco-macedônica e asiática (helenística), o que, para Aristóteles, era inadmissível. Calístenes, sobrinho de Aristóteles, era o narrador dos feitos das campanhas militares de Alexandre. “Mas também os costumes macedônicos e a política grega eram cada vez mais rejeitados por Alexandre na sua adoção autoglorificada do estilo e da substância da monarquia persa. (...) Calístenes compreendeu sua tarefa como um grego: deveria ser o Homero a narrar os feitos do novo Aquiles. Não surpreendia que estivesse entre os do círculo que Alexandre que foram hostilizados com a transformação de Alexandre de hégemón grego em monarca persa. Alexandre mandou executá-lo”, conta Alasdair MacIntire (p. 102).
Esta foi a gota d’água que fez Aristóteles cerrar relações com Alexandre Magno, em 327 a.C. “Apesar de iniciado no conhecimento das virtudes éticas e dianoéticas da doutrina aristotélica, Alexandre Magno cedeu à sua ambição pela glória temporal, trazendo decepção ao espírito do Estagirita, uma vez que seus princípios haviam sido negligenciados pelo jovem espírito conquistador em detrimento das esperanças de salvação da Hélade”, explica Bittar (p. 30).
Com a morte de Alexandre Magno em 323 a.C, os nacionalistas de Atenas voltam ao poder e acusam Aristóteles de impiedade contra os deuses da cidade. Novamente, ele se retira. Dirige-se a Calcis, capital da Eubéia, e se instala num imóvel que foi de sua mãe, onde esquecido, viveu seus últimos momentos.



Do céu para a terra

Aristóteles discordou da teoria de seu professor, Platão, de oposição entre mundo sensível e mundo inteligível. Fundiu-os no conceito de substância, ou seja, aquilo que é em si mesmo, o suporte dos atributos, explicam Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins (p. 123). Os atributos que não podem faltar para a substância são a essência. Já os atributos que podem, ou não, fazer parte da substância são o acidente. Exemplo. A substância homem tem como essência a racionalidade e como acidente ser gordo, ou magro, velho ou jovem.
Mas os seres se transformam, e a noção de substância-essência-acidente não responde a isso. Daí, Aristóteles recorre à forma e matéria. Tudo ser é composto de forma e matéria. “Matéria é o princípio indeterminado de que o mundo físico é composto, é ‘aquilo de que é feito algo’, o que não coincide exatamente com o que nós entendemos por matéria, na física, por se caracterizar pela indeterminação. Forma é ‘aquilo que faz com que uma coisa seja o que é. (...) Numa estátua, por exemplo, a matéria (que nesse caso é a matéria segunda, pois já tem alguma determinação) é o mármore; a forma é a idéia que o escultor realiza na estátua. É por meio da noção de matéria e forma que se explica o devir. Todo ser tende a tornar atual a forma que tem em si como potência. Por exemplo, a semente, quando enterrada, desenvolve-se e se transforma no carvalho que era em potência’”, ensinam Aranha e Martins (p. 123).
O movimento transforma potência em ato. É uma relação entre dois seres diferentes, em que um se converte no outro. Aranha e Martins (p. 123) explicam: “A potência é a capacidade de tornar-se alguma coisa e, para tal, é preciso que sofra a ação de outro ser já em ato. A semente que contém o carvalho em potência foi gerada por um carvalho em ato.”
Dessa forma, se distinguem vários tipos de movimento e das suas causas. Daí, a teoria das quatro causas: causa material, causa formal, causa eficiente e causa final. “Usando o exemplo de uma estátua, a causa material é aquilo de que a coisa é feita (mármore); a eficiente é aquilo com que a coisa é feita (o escultor); a formal é aquilo que a coisa vai ser (a forma que estátua adquire); a final é aquilo para o qual a coisa é feita (a finalidade da estátua)”, exemplificam Aranha e Martins (p. 124).



O animal político

Para Aristóteles, o ser humano é por natureza um animal político (politikon zoon). E a formação das cidades-estado gregas nada mais era que o resultado da concretização da natureza humana. “Historicamente, diz ele, a cidade-estado é um resultado orgânico da união de várias cidadezinhas que desse modo chegaram a um estado de ‘auto-suficiência’. A cidade-estado não existe meramente para a satisfação de necessidades materiais; ao contrário, procura satisfazer a necessidade humana de uma vida existencial satisfatória, e precisamos nos empenhar por fazer com que esse modo de vida esteja em harmonia com a natureza do homem”, assinala Wayne Morrison (p. 49-50).
Aliás, segundo Aristóteles, só se pode desenvolver a razão à medida em que o homem se integre à polis. Fora dela, o homem seria uma divindade ou um monstro. E a política, comenta Flamarion Tavares Leite (p. 39), é a ciência primordial porque o bem da cidade é superior ao bem individual: “A pólis faz do homem um ser completo, pois ela realiza as condições desta completude: ordem, paz e justiça.”
Nesta cidade, assevera Lesley Brown (p. 661), deve haver condições para que o homem adquira e exerça virtudes morais e individuais. Enfim, que se realize em plenitude, já que a pólis é o lócus da racionalidade humana. E, fora dela, não seria possível o seu desenvolvimento. “Separado da pólis, o que poderia ser um ser humano torna-se um animal selvagem”, assevera MacIntyre (p. 111).
No entanto, apesar de ser estrangeiro em Atenas, Aristóteles justificou a exclusão de algumas categorias de pessoas da vida pública – mulheres e escravos, por exemplo. Para ele, a escravidão seria natural. Algumas pessoas seriam incapazes de se auto-governarem, daí, teriam que se submeter ao poder de outro, para seu próprio bem. “O escravo é um instrumento animado, imprescindível para manejar instrumentos inanimados para a produção de bens”, disserta Leite (p. 39) sobre Aristóteles. MacIntyre (p. 129) especifica: “As pessoas reduzidas à condição de escravas realmente tornam-se em grande parte irresponsáveis, sem iniciativa, ansiosas por evitar o trabalho e incapazes de exercer a autoridade. As mulheres, pressionadas por exigências incompatíveis com seu papel social e privadas de educação – determinadas, por circunstâncias variadas, a ser tão mansamente complacentes como Ismene ou Crisótemis e tão desembaraçadamente leais à família como Antígona ou Electra – frequentemente apresentarão emoções fortes e indisciplinadas.”


Virtudes intelectuais e virtudes morais

Aristóteles definiu a eudaimonia (felicidade, ou bem-estar) como o supremo bem. “Nesta perspectiva, a felicidade reside numa disposição efetiva da alma, de acordo com a virtude; acentua-se que se trata de uma disposição anímica efetiva, pois a possessão da virtude não pode ser separada de sua práxis”, salienta Bittar (p. 1014). Uma felicidade, portanto, racional e não aquela de satisfação dos instintos. Há necessidade de o homem cultivar virtudes para atingir o supremo bem. Essas virtudes podem ser intelectuais (ou dianoéticas) ou morais (éticas), que residem na alma racional. Aliás, dizia Aristóteles, que todos os seres vivos possuem almas, porém, nem todos tinham todas suas faculdades. A nutritiva é comum aos animais, vegetais e aos homens. A sensitiva, comum a homens e animais. E a racional é exclusiva dos homens, que lhes permite desenvolver a capacidade moral. “A escolha moral precisa da razão”, afirma Morrison (p. 55).
E é essa razão que deve prevalecer sobre as paixões que, por abstinência ou excesso, levam o homem ao erro. Os homens se diferem dos animais pois, pelo uso da razão, organizam seus desejos e disposições segundo aquilo que consideram verdadeiramente seu bem. O apetite (órexis), então, se divide em dois: desejo racional (boúlesis) e desejo não racional imediata e temporariamente satisfatório (epithymía). O preferível é o desejo racional, enquanto o desejo não racional seria fruto do engano conduzido pelo descontrole das paixões. “Cada virtude é produto do controle racional das paixões. Levar uma vida virtuosa não significa negar ou rejeitar nenhuma das aptidões naturais do homem, mas sim mantê-las sob controle”, diz Morrison (p. 55).
O raciocínio humano, para Aristóteles, se desdobra em dois: o teórico (dá conhecimento de princípios estabelecidos, saber filosófico) e o prático (guia racional para atos de uma pessoa em circunstâncias particulares – sabedoria prática), assevera Morrison (p. 55). As virtudes intelectuais – sabedoria e compreensão filosófica – são adquiridas pelo ensino e pela aprendizagem, já as virtudes morais, pelo hábito. “Todas virtudes morais têm de ser aprendidas e praticadas, e só se tornam virtudes por meio da ação, pois ‘tornamo-nos justos através da prática da justiça, moderados através da prática da moderação, corajosos através da demonstração de coragem’. As virtudes ‘cardeais’ são a coragem, a moderação, a justiça e a sabedoria”, escreve Morrison (p. 55-56). “Segue-se que, para aqueles que ainda não foram educados nas virtudes, a vida das virtudes parecerá necessariamente sem justificação racional; a justificação racional da vida virtuosa dentro da pólis só está disponível àqueles que já participaram mais ou menos completamente daquela vida”, adiciona MacIntyre (p. 124).
Cada virtude seria o controle racional das paixões e estaria como o meio-termo entre extremos (teoria da mesótes). Porém, há de se salientar que esse meio-termo não é igual de pessoa para pessoa. Porém, alguns outros atos, como homicídio, rancor, inveja, adultério, roubo não têm meio-termo. “São coisas más em si mesmas, e não por seus excessos e carências. Quem as pratica está sempre incorrendo em erro”, diferencia Morrison. Confira o quadro aristotélico de virtudes e vícios por excesso e por falta, elaborado pela professora Marilena Chauí (p. 312):


Virtude Vício por excesso Vício por falta
coragem temeridade covardia
temperança libertinagem insensibilidade
liberalidade prodigalidade avareza
respeito próprio vulgaridade vileza
magnificência vaidade modéstia
gentileza irrascibilidade indiferença
veracidade orgulho descrédito próprio
agudeza de espírito zombaria grosseria
amizade condescendência tédio
justa indignação inveja malevolência


Justiça geral e justiça particular

Não se pretende esgotar, obviamente o estudo da doutrina da justiça aristotélica, porém, apenas de delinear algumas características para facilitar a sistematização do estudo. Aí vai, então. A principal virtude, para Aristóteles, seria a justiça, que se divide em geral (total, universal ou integral, a díkaion nomimón) e particular. Em regra, justiça geral seria a observância de que a norma social é de caráter vinculativo. Justiça e legalidade são uma, já que o respeito à lei corresponde ao respeito de todos, alertam Carlos Eduardo Bianca Bittar e Guilherme de Assis Almeida (p. 131). Justiça total seria agir segundo a legalidade. A lei deveria ser produzida segundo a prudência (phrónesis) legislativa, a nomothesía por parte do legislador. O fim das leis deveria ser o bem comum.
Virtude total seria agir segundo a disposição do caráter, sem que haja necessidade de se impor lei ou que se tenha conhecimento dela. Contudo, não se quer justificar o cumprimento de leis “más”, como comenta Morrison (p. 56): “Embora Aristóteles acredite que a lei seja um instrumento por meio da qual a cidade-estado é direcionada para o bem comum, ou através do qual uma classe dominante de alto nível dirige a cidade, pode haver leis que, apesar de sancionadas, não cumprem sua finalidade.”
Por sua vez, a justiça particular se relaciona com parte da virtude, e não com a virtude total como a justiça geral (ou total). “Trata-se dizer que o justo particular é, de certa forma, espécie do gênero justo total, pois quem comete um injusto particular não deixa de violar a lei, e como tal, praticar um injusto no sentido mais genérico. Mas aqui se particulariza ainda mais a acepção do termo justiça é porque se procede per genus et differentiam da mais ampla à mais estreita das significações”, ensinam Bittar e Almeida (p. 132).
A justiça particular se refere mais às relações diretas entre as partes e se divide em: a-) justiça distributiva (díkaion dianimetikón); b-) justiça corretiva – díkaion diorthotikón (b.1 – justiça comutativa e b.2 – justiça judicial, ou reparativa). “A justiça corretiva tem função de restaurar, na medida do possível, a ordem justa que foi parcialmente destruída por alguma ação ou ações injustas. A justiça distributiva consiste na obediência ao princípio de distribuição que define a ordem protegida pela justiça corretiva”, prescreve MacIntyre (p. 118).


Justiça distributiva: entre governante e governados

A justiça distributiva seria um tipo de relação pública-privada na qual se atribui a cada um o que é seu na medida dos seus merecimentos. Seria uma ação do governante aos administrados, concernentes na distribuição de dinheiro, honras, cargos, ou outros bens. Novamente, entra a teoria da mesótes. A proporcionalidade da justiça distributiva é um meio-termo entre o excesso e a falta. Apesar de escorada na igualdade, esta deve ser vista como igualdade numa sociedade de desiguais. Dessa forma, escrevem Bittar e Almeida (p. 134): “De fato, a injustiça na distribuição recai em um dos pólos, seja quando pessoas desiguais recebem a mesma quantia de encargos e de benefícios, seja quando pessoas iguais recebem quantias desiguais de benefícios e encargos.”
A doutrina de Pitágoras, também ensinada na Academia de Platão, também influenciou Aristóteles. O número 4, para Pitágoras, representava a justiça, o que era sustentado pelos seguintes cálculos: 2 + 2 = 4 e 2 x 2 = 4. Um pouco místico, porém, com sentido. Em Aristóteles, observam-se quatro partes (dois sujeitos e dois objetos) relacionadas. O primeiro termo tem proporção direta com o terceiro, e o segundo com o quarto: A : B = C : C, onde A + C = B + D. “A igualdade estabelecida é do tipo geométrico, observando-se a proporcionalidade da participação de cada qual no critério eleito pela constituição (politeía). A igualdade na distribuição visa à manutenção de um equilíbrio, pois aos iguais é devida a mesma quantidade de benefícios ou encargos, assim como aos desiguais são devidas partes diferentes à medida que são desiguais e que se desigualam”, asseveram Bittar e Almeida (p. 134).


Justiça corretiva: entre iguais

A justiça corretiva, por outro lado, é aplicada nas relações entre os indivíduos, nas quais estariam – em tese – em situação de igualdade, ou de coordenação. A justiça particular corretiva estriba-se no restabelecimento de um equilíbrio entre os particulares que foi, em algum momento, rompido. Prima-se pela igualdade aritmética. Ao contrário da justiça particular distributiva, não se leva em consideração o mérito ou outros fatores subjetivos. Bittar e Almeida ensinam (p. 135): “A aritmética aplicável permite a ponderação entre a perda e o ganho, com objetividade, o restabelecimento das partes à posição inicial em que se encontravam; o justo corretivo se exerce por meio do retorno das partes ao status quo ante. Tem-se uma perfeita equidistância das partes relativamente ao centro, onde se situa o justo meio.”
A justiça corretiva comutativa se dá quando se intervém a vontade dos interessados. A justiça corretiva judicial (ou reparativa) ocorre ao se contrapor contra a vontade dos interessados. A grosso modo, a primeira poderia ser associado com as obrigações e contratos, o reequilíbrio das instituições humanas baseadas na voluntariedade da ação, principalmente nas questões patrimoniais, intercambiadas pela moeda.
A segunda, a justiça corretiva judicial ou reparativa, se relaciona com um dano causado indevidamente a outrem. Também se aplica o conceito de igualdade aritmética para que as partes, se possível, retornem ao estando anterior à ofensa. A igualdade, nesse prisma, seria rompida por meio da clandestinidade (furto, adultério, envenenamento, lenocínio, corrupção, falso testemunho, etc) ou da violência (sequestro, agressão, homicídio, roubo, mutilação, insultos, injúrias, por exemplo), ensinam Bittar e Almeida (p. 139). À clandestinidade refere-se à sutileza dos atos injustos. Já à violência, os elementos de agressão moral ou física. Houve, pois, desigualdade a partir de uma situação causadora de dano, “cabendo ao juiz, num exercício racional de apreciação do caso particular, igualar novamente as partes, aplicando ao causador de uma lesão a pena que corresponde ao delito por este cometido”, prosseguem (p. 140). “Com o restabelecimento da igualdade, atua o juiz de modo a tolher o ganho, reprimindo a conduta lesiva, e, se possível, fazendo com que a perda sofrida seja reparada.”


Equidade para que a justiça não seja injusta

A lei é geral e abstrata e muitas vezes, caso não seja corrigida, pode causar problemas. Aristóteles disse, então, haver necessidade da equidade (epieikéia), que adapta a lei para cada caso em particular, temperando-lhe a melhor aplicação. Explica-se o justo legal é estático, já a realidade da vida é mutante. A equidade, segundo Aristóteles, serviria para aplicar-se o Direito segundo a intenção do legislador. E, geralmente, essa situação mais se amolda, quando há ausência de lei. “A necessidade de aplicação da equidade decorre do fato de que as leis prescrevem conteúdos de modo genérico, indistintamente, dirigindo-se a todos, sem diferenciar, portanto, possíveis nuances e variações concretas, fáticas, fenomênicas, de modo que surgem casos para os quais, se aplicada a lei (nómos) em sua generalidade (kathólou), estar-se-á a causar uma injustiça por meio do próprio justo legal”, arrematam Bittar e Almeida (p. 150).


Amizade como liame perfeito

Amizade (philía) e justiça (dikaiosýne), segundo Aristóteles, estariam estreitamente relacionadas. A primeira seria o verdadeiro liame entre as cidades-estado, o verdadeiro assento da paz, para o bem do convívio social. Os amigos necessitam de justiça, e os justos precisam de amizade. E a forma mais genuína de justiça seria um tipo de amizade, principalmente a amizade entre pessoas virtuosas. Entretanto, a amizade exige semelhança para que torne essa interação subjetiva uma relação justa, “pois caracteriza-se por estar desprovida de todo interesse e de toda vontade de prejudicar, que são substituídas, neste tipo de relacionamento verdadeiramente humano, uma vez que racional e equitativo, pela reciprocidade, pela espontaneidade, pelo auxílio mútuo, pela confiança, pela igualdade”, escrevem Bittar e Almeida (p. 154).
Ensinam ainda Bittar e Almeida (p. 155) que, para Aristóteles, quando maior a proximidade e afeição da amizade, maior o grau de justiça. O justo e a amizade se aperfeiçoam em sociedade. E, para cada tipo de comunidade, uma forma de amizade. As formas de governo, aliás, também concernem à razão dominando as paixões e também ao grau de amizade. Assim, as formas normais seguidas das suas formas degeneradas (corruptas) seriam: monarquia (basiléia) e tirania (tyrannis); aristocracia (aristokratía) e oligarquia (oligarchía); timocracia (tímokratía) – ou democracia moderada - e democracia (demokratia) – o democracia radical, a demagogia.
Num primeiro momento, a sabedoria seria o único título legítimo de governo. Discorre Leite (p. 40): “Em Aristóteles, o ciclo constitucional toma a seguinte sequência: da monarquia passa-se à tirania; da tirania à aristocracia; da aristocracia à oligarquia; e desta, à democracia e suas etapas moderada e radical. Este esquema não é histórico, mas lógico.” À medida em que as paixões sublevam-se à razão, tal como a amizade e a justiça se esvaem da vida comunitária, as formas de governo se degeneram.


Considerações finais

Por questões óbvias, não se pretende esgotar a doutrina de Aristóteles em tão poucas páginas. Trata-se apenas de um texto introdutório e de guia para os estudos da teoria do estagirita. O enfoque deste trabalho foram ética, justiça, Direito e amizade. Porém, a influência deste autor no mundo ocidental não se esgota a isso. Daí, a necessidade – para quem se interessar – de fazer como o próprio Aristóteles, quer dizer, ler suas principais obras e seus comentadores.





Ouça!






Alexander, the Great (Iron Maiden)






My son, ask for thyself another kingdom,
For that which I leave is too small for thee."
Near to the East, in a part of ancient Greece,
In an ancient land called Macedonia,
Was born a son to Philip of Macedon,
The legend his name was Alexander.
At the age of nineteen, he became the Macedon king,
And he swore to free all of Asia Minor,
By the Aegian Sea in 334 BC,
He utterly beat the armies of Persia.
Chorus:
Alexander the Great,
His name struck fear into hearts of men,
Alexander the Great,
Became a legend 'mongst mortal men.
King Darius the third, Defeated fled Persia,
The Scythians fell by the river Jaxartes,
Then Egypt fell to the Macedon king as well,
And he founded the city called Alexandria.
By the Tigris river, he met King Darius again,
And crushed him again in the battle of Arbela,
Entering Babylon and Susa, treasures he found,
Took Persepolis, the capital of Persia.
Chorus:
Alexander the Great,
His name struck fear into hearts of men,
Alexander the Great,
Became a god amongst mortal men.
A Phrygian King had bound a chariot yoke,
And Alexander cut the "Gordion knot",
And legend said that who untied the knot,
He would become the master of Asia.
Hellenism he spread far and wide,
The Macedonian learned mind,
Their culture was a western way of life,
He paved the way for Christianity.
Marching on, Marching on.
The battle weary marching side by side,
Alexander's army line by line,
They wouldn't follow him to India,
Tired of the combat, pain and the glory.
Chorus:
Alexander the Great,
His name struck fear into hearts of men,
Alexander the Great,
He died of fever in Babylon.



Tradução:
Alexandre, o Grande (Iron Maiden)

“Meu filho, consiga para você um outro reino
Pois este que deixo é pequeno demais para você”
Perto do leste, em uma parte da antiga Grécia
Em uma antiga terra chamada Macedônia
Nasceu o filho de Felipe da Macedônia
A lenda, seu nome era Alexandre
Aos dezenove anos tornou-se o rei da Macedônia
E jurou libertar toda a Ásia Menor
Pelo mar Egeu em 334 antes de Cristo
Derrotou completamente os exércitos da Pérsia
Refrão:
Alexandre, o Grande
Seu nome colocava medo nos corações dos homens
Alexandre, o Grande
Tornou-se uma lenda entre os mortais
Rei Dário III defendeu a Pérsia vazia
Os Simérios se renderam no rio Jaxartes
Os Egípcios sucumbiram também ao rei Macedônio
E ele fundou a cidade chamada Alexandria
No rio Tigre ele encontrou novamente o rei Dário
E o esmagou novamente na batalha de Arbela
Adentrando Babilônia e Susa, tesouros ele encontrou
Tomou Persépolis, a capital da Pérsia
Refrão:
Alexandre, o Grande
Seu nome colocava medo nos corações dos homens
Alexandre, o Grande
Tornou-se uma lenda entre os mortais
Um rei Frígio partiu em uma biga
E Alexandre cortou o Nó Górdio
E a lenda dizia que quem cortasse o Nó
Tornaria-se o governante da Ásia
Ele espalhou o Helenismo por todos os lados
A mente ensinada da Macedônia
Sua cultura era um estilo ocidental de vida
Ele pavimentou o caminho para o Cristianismo
Marchando, marchando
A cansativa batalha, marchando lado a lado
Os exércitos de Alexandre, linha a linha
Eles não seguiriam para a Índia
Cansados do combate, da dor, e da glória
Refrão:
Alexandre, o Grande
Seu nome colocava medo nos corações dos homens
Alexandre, o Grande
Morreu de febre na Babilônia

A letra desta música é praticamente uma biografia do mais célebre aluno de Aristóteles, Alexandre Magno (O Grande).


An Die Freude (Ode To Joy) – 9ª Sinfonia de Beethoven



O Freunde, nicht diese Töne!
Sondern lasst uns angenehmere anstimmen
und freudenvollere!
Freude, schöner Götterfunken,
Tochter aus Elysium,
Wir betreten feuertrunken.
Himmlische, dein Heiligtum!
Deine Zauber binden wieder
Was die Mode streng geteilt;
Alle Menschen werden Brüder
Wo dein sanfter Flügel weilt.
Wem der grosse Wurf gelungen
Eines Freundes Freund zu sein,
Wer ein holdes Weib errungen,
Mische seinen Jubel ein!
Ja, wer auch nur eine Seele
Sein nennt auf dem Erdenrund!
Und wer's nie gekonnt, der stehle
Weinend sich aus diesem Bund.
Freude trinken alle Wesen
An den Brüsten der Natur;
Alle Guten, alle Bösen,
Folgen ihrer Rosenspur.
Küsse gab sie uns und Reben,
Einen Freund, geprüft im Tod;
Wollust ward dem Wurm gegeben,
Und der Cherub steht vor Gott!
Froh, wie seine Sonnen fliegen
Durch des Himmels prächt'gen Plan,
Laufet, Brüder, eure Bahn,
Freudig, wie ein Held zum Siegen.
Freude, schöner Götterfunken,
Tochter aus Elysium,
Wir betreten feuertrunken.
Himmlische, dein Heiligtum!
Seid umschlungen, Millionen.
Dieser Kuss der ganzen Welt!
Brüder! Über'm Sternenzelt
Muss ein lieber Vater wohnen.
Ihr stürzt nieder, Millionen?
Ahnest du den Schöpfer, Welt?
Such ihn über'm Sternenzelt!
Über Sternen muss er wohnen.




Ode à Alegria

de Friedrich von Schiller, tradução do original, tal como se canta na 9ª Sinfonia de Ludwig Van Beethoven.



(Barítono)
Oh amigos, mudemos de tom!
Entoemos algo mais prazeroso
E mais alegre!
(Barítonos, quarteto e coro)
Alegre, formosa centelha divina,
Filha do Elíseo,
Ébrios de fogo entramos
Em teu santuário celeste!
Tua magia volta a unir
O que o costume rigorosamente dividiu.
Todos os homens se irmanam 2X
Ali onde teu doce vôo se detém.
Quem já conseguiu o maior tesouro
De ser o amigo de um amigo,
Quem já conquistou uma mulher amável
Rejubile-se conosco!
Sim, mesmo se alguém conquistar apenas uma alma,
Uma única em todo o mundo.
Mas aquele que falhou nisso 2X
Que fique chorando sozinho!
Alegria bebem todos os seres
No seio da Natureza:
Todos os bons, todos os maus,
Seguem seu rastro de rosas.
Ela nos deu beijos e vinho e
Um amigo leal até a morte;
Deu força para a vida aos mais humildes 2x
E ao querubim que se ergue diante de Deus!
E ao querubim que se ergue diante de Deus!
(Tenor solo e coro)
Alegremente, como seus sóis corram
Através do esplêndido espaço celeste
Se expressem, irmãos, em seus caminhos,
Alegremente como o herói diante da vitória.
(Todos)
Alegre, formosa centelha divina,
Filha do Elíseo,
Ébrios de fogo entramos
Em teu santuário celeste!
Tua magia volta a unir
O que o costume rigorosamente dividiu.
Todos os homens se irmanam 2X
Ali onde teu doce vôo se detém.
(Tenores e Barítonos)
Abracem-se milhões!
Enviem este beijo para todo o mundo!
(Todos)
Abracem-se milhões!
Enviem este beijo para todo o mundo!
(Tenores e Barítonos)
Irmãos, além do céu estrelado
Mora um Pai Amado.
(Todos)
Milhões se deprimem diante Dele?
Mundo, você percebe seu Criador?
Procure-o mais acima do céu estrelado!
Sobre as estrelas onde Ele mora.

Para Aristóteles, se houver amizade entre os homens, não há necessidade de justiça. Teça considerações sobre essa afirmação.


Leia mais:

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. 3. rev. São Paulo: Moderna, 2003.
BITTAR, Carlos Eduardo Bianca. Curso de Filosofia Aristotélica – leitura e interpretação do pensamento aristotélico. Barueri: Manole, 2003.
____; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 8. ed. rev. aum. São Paulo: Atlas, 2010.
BROWN, Lesley. Platão e Aristóteles, in: Compêndio de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2007.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006.
LEITE, Flamarion Tavares. Manual de Filosofia Geral e Jurídica – das origens a Kant. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991.
MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito – dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
NEDEL, José. Ética, Direito e Justiça. 2. ed. rev. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Ética, Direito e Justiça: Sócrates e Platão contra os sofistas


Prof. Ms. Roger Moko Yabiku


No início da Filosofia, o foco era na origem da natureza, do mundo e, por reflexo, as relações entre os homens. Porém, com o movimento dos sofistas no século V antes de Cristo, houve uma ruptura, no qual o homem é colocado no centro das discussões filosóficas. Os sofistas – sábios – foram os primeiros professores, mas não formaram uma escola propriamente dita, já que vários dos seus pensamentos divergiam entre si.
Com uma relativa estabilização política da Grécia Antiga (século V a.C.), no chamado Século de Péricles, não havia tanta necessidade de cultivar as virtudes (arete) dos guerreiros. Nessa época, floresceram as artes, a mitologia, a filosofia, a literatura, a história e a política. Os fatores que contribuíram para isso, segundo Bittar e Almeida (p. 92), foram a participação popular nos instrumentos de poder, principalmente com a estruturação da democracia de Atenas, a expansão das fronteiras gregas, acúmulo de riquezas e intensificação do comércio, inclusive com outros povos, e a utilização do “falar bem” para assemblear, além de se ter conhecimentos gerais.


Os sofistas e a democracia grega


Foram os sofistas uma resposta às necessidades da democracia grega, ou seja, exercer a cidadania por meio do discurso. “Isso não há que se negar como dado comum a todos os sofistas: são eles homens dotados de domínio da palavra, e que ensinam a seus auditórios (auditórios abertos ou círculos de iniciados) a arte da retórica, com vista no incremento da arte persuasiva (peitho)”, escrevem Bittar e Assis (p. 93).
O domínio da arte retórica, por parte de homens dotados da técnica (techné) da utilização das palavras, explicam Bittar e Almeida (p. 94), era necessário não somente na praça pública (agorá), mas também para atuar perante os magistrados, na tribuna: “As palavras tornaram-se o elemento primordial para a definição do justo e do injusto. A técnica argumentativa faculta ao orador, por mais difícil que seja sua causa jurídica, suplantar as barreiras dos preconceitos sobre o justo e o injusto e demonstrar aquilo que aos olhos vulgares não é imediatamente visível.”
Talvez se tenha noção, vulgarmente, de que os sofistas – muitos deles estrangeiros - formaram uma única escola, por estarem no cenário das polêmicas com Sócrates (469-399 a.C) e seu discípulo Platão (427-347 a.C.). “Os sofistas sempre foram mal interpretados por causa das críticas que a eles fizeram Sócrates e Platão. A imagem de certa forma caricatural da sofística tem sido reelaborada na tentativa de resgatar a sua verdadeira importância”, assinalam Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins (p. 120).
Sócrates acusou os sofistas de “prostituição” simplesmente porque estes ensinavam para aqueles que pudessem pagá-los, sendo os primeiros “professores”, na concepção atual da palavra, ensinam Aranha e Martins (p. 120): “Cabe aqui um reparo: na Grécia Antiga, apenas a aristocracia se ocupava com o trabalho intelectual, pois gozava do ócio, ou seja, da disponibilidade de tempo, já que o trabalho manual, de subsistência, era ocupação de escravos. Ora, os sofistas, geralmente pertencentes à classe média, fazem das aulas seu ofício, por não serem suficientemente ricos para se darem ao luxo de filosofarem.”
No entanto, os sofistas sistematizaram o ensino, formando um currículo, explicam Aranha e Martins (p. 120): “gramática (da qual são iniciadores), retórica e dialética; por influência dos pitagóricos, desenvolvem a aritmética, a geometria, a astronomia e a música.”
“O homem é a medida de todas as coisas”, disse o sofista Protágoras de Abdera (485-411 a.C.). Assim, o ser humano passa a ser o centro das atenções, como explicam Carlos Eduardo Bianca Bittar e Guilherme de Assis Almeida (p. 90): “É esse o contexto de florescimento do movimento sofístico, muito mais ligado que está, portanto, à discussão de interesses comunitários, a discursos e elocuções públicas, à manifestação e à deliberação em audiências políticas, ao convencimento dos pares, ao alcance da notoriedade no espaço da praça pública, à demonstração pelo raciocínio dos ardis do homem em interação social.”
Os sofistas foram os primeiros a estabelecer uma diferença entre natureza (physis) e lei humana (nomos), sem, no entanto, contrapô-las, explica Flamarion Tavares Leite (p. 23), na etapa original. O justo e o injusto, para os sofistas, não se originará na natureza das coisas, mas nas opiniões e convenções humanas, na forma da lei (nomos), oriunda da sua opinião (doxa). Em semelhança ao que versa o positivismo jurídico atual, segundo eles, o justo é o que está segundo a lei, e injusto o que a contraria. Numa segunda etapa, os sofistas afirmariam que a natureza se opõe à lei humana. “Nesta, encontra-se fundada a igualdade natural de todos os homens; naquela, sua desigualdade antinatural”, ensina Leite (p. 23).
Com os sofistas, opositores radicais da tradição, surgia o relativo, o provável, o possível, o instável, o convencional, afirmam Bittar e Almeida (p. 94) Nessa segunda etapa, de predomínio da lei humana (nomos) sobre a natureza, os sofistas optaram pela prevalência desta, que libertaria os humanos dos laços de barbárie. A deliberação sobre o conteúdo das leis não teria origem na natureza ou na divindade (nem mesmo com base nas deusas da justiça, Thémis e Diké), mas na vontade humana. A justiça é definida por critérios humanos, e não naturais. Se fossem naturais, todas as leis seriam iguais. Pode parecer democrático tudo isso. Mas atenção. Alguns cultores da sofística assinalavam, conforme Bittar e Almeida (p. 96), que “os homens deveriam submeter-se ao poder daquele que ascendesse ao controle da cidade por meio da força; a justiça é vantagem para aquele que domina e não para aquele que é dominado (Trasímaco)”.
O conceito de justiça, para os sofistas, é igualado ao de lei. Justo é o que está na lei, o que foi dito pelo legislador. “Em outras palavras, a mesma inconstância da legalidade (o que é lei hoje poderá não ser amanhã) passa a ser aplicada à justiça (o que é justo hoje poderá não ser amanhã). Nada do que se pode dizer absoluto (imutável, perene, eterno, incontestável...) é aceito pela sofística. Está aberto campo para o relativismo da justiça”, falam Bittar e Almeida (p. 96).


Sócrates e o nascimento da ética

“Só sei que nada sei”. O autor da frase, Sócrates – um opositor ferrenho aos sofistas - deixou uma marca indiscutível no modo de se pensar no Ocidente. Figura polêmica, por não ter deixado escritos, muitos dizem, inclusive, que não existiu, foi apenas um personagem que teria sido inventado por seus supostos alunos Platão e Xenofonte. Foi, então, principalmente por meio dos escritos desses dois, que o legado de Sócrates não pereceu. Convivendo na Era de Péricles (século V a.C.), de apogeu da Grécia, junto ao povo nas praças públicas (agorá), da cidade (pólis) de Atenas, Sócrates situou sua doutrina na natureza humana e seus desdobramentos ético-sociais. Via na prudência (phónesis) uma virtude essencial para a ordem social, visando uma educação cidadã.
De origem simples, Sócrates era filho de um escultor e de uma parteira. Estudou literatura, música, ginástica, retórica, geometria e astronomia, tal como as obras dos outros filósofos e também dos sofistas, conta Andreas Drosdek (p. 15). Enquanto conscrito no serviço militar, lutou com bravura pela sua cidade. Participou por muito tempo da Assembléia de Atenas, mas não apoiava normas que considerava injustas. “Não apoiou, por exemplo, o governo dos Trinta Tiranos, no ano 404, que mandava para a prisão, por simples capricho, vítimas inocentes. Provavelmente, só foi salvo da fúria dos tiranos graças à contrarrevolução, ocorrida pouco tempo depois”, salienta Drosdek (p. 16).
Sócrates tinha um método baseado na ironia e na maiêutica. Na primeira fase do método, a ironia, Sócrates – diante de outra pessoa que dizia conhecer um assunto – dizia que nada sabia. Ele só fazia perguntas, até desmontar o outro, que acabava por demonstrar, na verdade, sua ignorância. Na segunda fase, a maiêutica (parto em grego, em homenagem à sua mãe Fenareta), Sócrates dava luz às novas idéias, construindo novos conceitos, mesmo que não se chegasse a conclusões definitivas. Indagava sobre o sentido dos costumes e as disposições de caráter dos atenienses, dirigindo-se à sociedade e ao indivíduo.
A professora Marilena Chauí (p. 311) é contundente sobre o método de Sócrates: “As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera, era comum, quando um grupo conversava com o filósofo, uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias. Após certo tempo de conversa com Sócrates, um ateniense via-se diante de duas alternativas: ou zangar-se com a impertinência do filósofo perguntador e ir embora irritado, ou reconhecer que não sabia o que imaginava saber, dispondo-se a começar, na companhia de Sócrates, a busca filosófica da virtude e do bem.”
Devido a essa atitude, ao mesmo tempo em que arregimentava seguidores, Sócrates teve um grande número de inimigos, que, posteriormente, conseguiram articular politicamente a sua condenação à morte, com respaldo popular, sob a acusação de negar as divindades (criando outras) e de corromper a juventude. Condenado ao suicídio, Sócrates bebeu um veneno chamado cicuta. Poderia ter optado pelo exílio de Atenas ou apelado por misericórdia, mas não o fez. “No entanto, a ética de respeito às leis, e, portanto, à coletividade, não permitia que assim agisse”, narram Bittar e Almeida (p. 102). “A fuga, portanto, era impensável para ele, pois se assim agisse não estaria mais servindo a Atenas”, completa Drosdek (p. 17).
Sócrates desafiava a ordem vigente nos círculos sociais da sua época, pois questionava o relativismo dos sofistas, pregando uma verdade perene, que influenciaria sistemas filosóficos posteriores como o platonismo, o aristotelismo e o estoicismo.
Desse modo, para Sócrates, erro é fruto da ignorância, e toda virtude é conhecimento. O filósofo, assim, tinha como missão “parir” o conhecimento que está dentro das pessoas. “Daí a importância de reconhecer que a maior luta humana deve ser pela educação (paidéia), e que a maior das virtudes (areté) é a de saber que nada se sabe”, escrevem Bittar e Almeida (p. 99) De onde será que os partidos e os políticos tiraram a bandeira da “educação” acima de tudo?
A Sócrates pode ser atribuída a origem da ética (ou filosofia moral), tendo como ponto de partida a consciência do agente moral, arremata Chauí (p. 311): “É sujeito ético ou moral somente aquele que sabe o que faz, conhece as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais. Sócrates afirma que apenas o ignorante é vicioso ou incapaz de virtude, pois quem sabe o que o é bem não poderá deixar de agir virtuosamente.”
A ética de Sócrates reside no conhecimento e na felicidade. Como assim conhecimento? Aquele que comete o mal crê praticar algo que o leve à felicidade, por ter seu juízo enganado por meros “achismos”. Por isso é preciso, antes, conhecer a si mesmo. Depois de dotado de conhecimento, aí, sim, valorar acerca do bem e do mal. A felicidade, para ele, não se resumia a bens materiais, riquezas, conforto ou status perante os demais homens. Conforme Bittar e Almeida (p. 101): “O cultivo da verdadeira virtude, consistente no controle efetivo das paixões e na condução das forças humanas para a realização do saber, é o que conduz o homem à felicidade.” Sua ética é, portanto, teleológica, ou seja, tem como fim da ação a felicidade.
Para Sócrates o coletivo tinha primazia sobre o individual, mas se opunha à concepção de que Direito é a expressão dos mais fortes, sendo melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la. A filosofia, de acordo com Sócrates, é buscar a maior perfeição possível seja na vida, quanto na morte. “Para ele, a cidade e suas leis são necessárias e respondem às exigências da natureza humana. A obediência às leis da cidade é um dever sempre e para todos. Por isso Sócrates submete-se à condenação da cidade, ainda que reconhecendo a injustiça de que é vítima”, disserta Leite (p. 24-25). Complementam Bittar e Almeida (p. 102): “E isso porque a ética socrática não se aferra somente à lei e ao respeito dos deveres humanos em si e por si. Transcende a isso tudo: inscreve-se como uma ética que se atrela ao porvir (post mortem). (...) Isso ainda significa dizer que a verdade e a justiça devem ser buscadas com vista em um fim maior, o bem viver post mortem. E não há outra razão pela qual se deseje filosofar senão a de preparar-se para a morte.”
Embora tivesse conhecimento de que a lei humana (nomos) – artifício humano e não da natureza – poderia ser justa ou injusta, Sócrates pregava a irrestrita obediência à lei. O Direito – conjunto de leis, em termos simplistas – seria um instrumento de coesão social que levaria à realização do bem comum, entendido como o “desenvolvimento integral de todas as potencialidades humanas, alcançadas por meio do cultivo das virtudes”, ensinam Bittar e Almeida (p. 104). A lei seria elemento de ordem no todo da cidade (pólis) e, por isso, não deveria ser contrariada, mesmo que se voltasse contra si mesmo, sob pena de se instalar a desordem social. “O homem integrado enquanto integrado ao modo político de vida deve zelar pelo respeito absoluto, mesmo em detrimento da própria vida, às leis comuns a todos, às normas políticas (nómos póleos)”, completam Bittar e Almeida (p. 106-107).
O indivíduo nas suas elucubrações poderia questionar os critérios de justiça de uma lei positiva (externa), mas somente criticá-la, sem desobedecê-la, evitando, assim, o caos por levar outras pessoas a desobedecê-la. Dizem Bittar e Almeida (p. 108): “Em outras palavras, para Sócrates, com base num juízo moral, não se podem derrogar leis positivas. O foro interior e individual deveria submeter-se ao exterior e geral em benefício da coletividade.” Prossegue Leite (p. 25): “Efetivamente, a justiça, para Sócrates, consiste no conhecimento e, portanto, na observância das verdadeiras leis que regem as relações entre os homens, tanto das leis da cidade como das leis não-escritas. Segundo Sócrates, que propugna pela obediência incondicional às leis da cidade, o justo não se esgota no legal, posto que acima da justiça humana existe uma justiça natural e divina.”
Bittar e Almeida (p. 109) enumeram os motivos que levaram Sócrates a optar pelo suicídio: “concatenação da lei moral com a legislação cívica; o respeito às normas e à religião que governavam a comunidade, no sentido do sacrifício da parte pela subsistência do todo; a importância e imperatividade da lei em favor da coletividade e da ordem do todo; a substituição do princípio da reciprocidade, segundo o qual se respondia ao injusto com injustiça, pelo princípio da anulação de um mal com o seu contrário, assim, da injustiça com um ato de justiça; o reconhecimento da sobrevivência da alma, para um julgamento definitivo pelos deuses, responsável pelo verdadeiro veredito dos atos humanos.”


Platão, as idéias e a hierarquia social


Platão, o mais famoso dos discípulos de Sócrates, nasceu no seio de uma das mais tradicionais famílias da aristocracia política de Atenas. Ao completar 20 anos, conheceu seu mentor, que mudaria para sempre o rumo da sua vida. “Platão era de família aristocrática, o que torna notável o fato de ele acreditar que os governantes não deveriam ser escolhidos por sua origem, e sim pela inteligência e força de caráter. Acima de tudo, o oportunismo dos políticos atenienses, que acabou culminando no julgamento e na sentença de morte de Sócrates, convencera Platão a considerar com muita seriedade as qualidades necessárias a um bom líder”, explica Drosdek (p. 26).
Em 387 a.C. Platão criou a Academia, o primeiro centro de ensino superior do Ocidente, afirma Leite (p. 27): “Até então, a educação superior nunca havia assumido essa forma corporativa, organizada, sedentária, com distribuição de cursos e matérias, que imprimiu Platão à Academia.” Seus principais livros são “A República”, “O Político” e “As Leis”.
Com relação à sua doutrina, é interessante recorrer ao “mito da caverna”, incluído no livro VII de “A República”, recomendam Aranha e Martins (p. 121): “Platão imagina uma caverna onde pessoas estão acorrentadas desde a infância, de tal forma que, não podendo ver a entrada dela, apenas enxergam o seu fundo, no qual são projetadas as sombras das coisas que passam às suas costas, onde há uma fogueira. Se um desses indivíduos conseguisse se soltar das correntes para contemplar à luz do dia os verdadeiros objetos, ao regressar, relatando o que viu aos seus antigos companheiros, esse o tomariam por louco e não acreditariam em suas palavras.”
Aqui, em termos relacionados ao conhecimento (epistemologia), faz uma separação entre mundo sensível (dos fenômenos) e mundo inteligível (das idéias gerais). O mundo sensível é percebido pelos sentidos, sendo ilusório, múltiplo, com réplicas imperfeitas do verdadeiro. Para Platão, o mundo das idéias gerais refletia a doutrina de Parmênides, nos quais o ser é imóvel, enquanto o mundo sensível se espelhava em Heráclito, que afirmava a mutabilidade essencial do ser. Na vida terrena, se experimenta a mutabilidade; no Hades (além-vida), a permanência. “As almas cumprem seus ciclos num longo período de provas, durante o qual permanecem indo e vindo entre duas realidades”, asseveram Bittar e Almeida (p. 121).
Aliando o arsenal teórico de Parmênides e de Sócrates, Platão cria a palavra “idéia”, para denominar as intuições intelectuais, superiores às sensíveis. O mundo real, para Platão, seria o mundo das idéias gerais (as únicas verdades), que seria atingido pela contemplação e depuração dos enganos dos sentidos. Asseveram Aranha e Martins (p. 122): “Para Platão há uma dialética que fará a alma elevar-se das coisas múltiplas e mutáveis às idéias unas e imutáveis. As idéias gerais são hierarquizadas, e no topo delas está a idéia do Bem, a mais alta em perfeição e a mais geral de todas: os seres e as coisas não existem senão enquanto participam do Bem. E o Bem supremo é também a Suprema Beleza. É o Deus de Platão.”
A alma humana recupera, as idéias que lhes estão latentes, por reminiscência. O esquecimento se deu na passagem do pós-vida (Hades) para a Terra. No pós-vida, as almas escolheriam um reencontro próximo com um corpo carnal, com base em experiências e hábitos de vida anteriores, explicam Bittar e Almeida (p. 119): “Nesse sentido, tendo em vista a liberdade de escolha de cada alma, podiam ser escolhidas vidas animais ou humanas; após a escolha, cada alma recebia seu demônio, que lhes encaminharia nas dificuldades da vida.”
Passa-se, agora, à interpretação política do “mito da caverna”. O filósofo (semelhante ao homem que conseguiu sair da caverna) contempla a verdadeira realidade, passando da opinião (doxa) à ciência (episteme). Aí, comentam Aranha e Martins (p. 122), deve “retornar ao meio dos outros indivíduos, para orientá-los (...), ensiná-los e governá-los”. Platão idealiza o sábio (filósofo) como rei para que o Estado seja bem governado, sendo preciso que “os filósofos se tornem reis, ou que os reis se tornem filósofos”. Como se lerá, a partir do parágrafo seguinte, isso norteou a teoria ético-política de Platão.
A justiça, escreve Platão em “A República”, é a virtude do cidadão e do filósofo que tem predominância sobre as outras (sabedoria, coragem e temperança). É a justiça que ordena as virtudes que regem cada uma das três partes (ou potências) da alma humana, a racional (possibilita o conhecimento das idéias), a irrascibilidade (impulsos e afetos) e a concupiscente (necessidades mais elementares). A razão seria governada pela sabedoria ou prudência (sophia ou phrónesis), a irrascível pela coragem (andreia). Tanto a irrascibilidade e a concupisciência deveriam submeter-se à razão, por meio da temperança ou moderação (sophrosyne).
As virtudes, para Platão, dependem de aperfeiçoamento constante por parte dos humanos, com a predominância – é claro, da alma racional sobre as tendências irascíveis e concupiscíveis. Existe harmonia (armonía) ao se dominar os instintos ferozes, o descontrole sexual e a fúria dos sentimentos, versam Bittar e Almeida (p. 114), permitindo que a alma frua dos prazeres espirituais e intelectuais: “O vício, ao contrário da virtude, está onde reina o caos entre as partes da alma. De fato, onde predomina o levante das partes inferiores com relação à alma racional, aí está implantado o reino do desgoverno, isso porque ora manda o peito, e suas ordens e mandamentos são torrentes incontroláveis (ódio, rancor, inveja, ganância...), ora manda a paixão ligada ao baixo ventre (sexualidade, gula...).” O recado, completam Bittar e Almeida (p. 115), é claro: “Sacrificar-se pela causa da verdade significa abandonar os desejos do corpo, e fazer da alma o fulcro de condenação da conduta em si e por si.”
Essa teoria da alma seria associada, por Platão, à teoria da cidade. Platão dividiu a sociedade em três classes, cada qual com uma função. No topo da sociedade estariam os governantes filósofos, guiados pela sabedoria (sophia), em seguida, os guerreiros imiscuídos da coragem (andreia) e, abaixo, os artesãos e agricultores, a base econômica. Os guerreiros e os artesãos e agricultores aceitariam o governo dos que têm sabedoria, e a temperança, que lhes é peculiar, lhes castraria o ímpeto de tomar o poder. Em suma, os filósofos seriam a cabeça; os guerreiros, o peito; e os artesãos e comerciantes o baixo ventre do corpo político.
A doutrina política de Platão é aristocrática: “Nesse contexto, a justiça corresponde: aos magistrados (filósofos) devem governar; os guardiões, defender a cidade das desordens internas e dos ataques externos; os artesãos e agricultores, produzir. Devem fazer apenas isso, sem intromissão naquilo que não lhes compete pelo ofício ou classe. Justiça, pois, é cada um fazer o que lhe é cometido, sem intrometer-se na seara dos demais. Isto significa que nenhuma das virtudes poderia existir sem a justiça. A injustiça seria a ruptura desta ordem, a sedição das potências inferiores contra a razão”, escreve Leite (p. 29).
Justiça para Platão é manter essa ordem original, ou as formas de governo (cinco, em “A República”) degenerariam. Para ele, a única forma de governo legítima e justa seria o governo dos sábios, que poderia ter a forma de monarquia. As demais seriam formas degeneradas da pura, nas quais não se efetivaria justiça. Com os guerreiros no poder, haveria a timocracia, o governo que preza honrarias. Caso os ricos ficassem no comando, seria uma oligarquia, que dividiria os cidadãos entre os mais abastados e os pobres. A oligarquia provocaria maior acumulação de bens para os ricos, desequilibrando e dividindo a cidade em duas, abrindo caminho para a democracia (a desordem). Com a desordem da democracia, um único homem tiraria proveito da situação para sagrar-se no poder, inaugurando a tirania, a forma que mais se opõe à justiça.
Já, em “O Político”, Platão descreve três formas legítimas de governo (monarquia, aristocracia e democracia moderada, em ordem decrescente de preferência) e três formas ilegítimas de governo (democracia turbulenta, oligarquia e tirania, da menos para a mais corrupta). “Em “As Leis”, Platão acrescenta uma forma à classificação exposta em ‘O Político’: a forma mista de governo, que é uma mescla de monarquia e democracia”, narra Leite (p. 32).
Aliás, havendo uma realidade divina (mundo das idéias gerais), além desta realidade (mundo sensível), implica-se, igualmente, na existência de uma justiça divina, superior à justiça falha e imperfeita dos homens. Se é inteligível, perfeita, absoluta e imutável essa justiça pode ser contemplada para, daí, extrair princípios para governar e manter a saúde do corpo social.
Não se trata, pois, de uma justiça apenas dos homens, mas de uma outra, metafísica, presente no Hades (além-vida), no qual a justiça universal se dá pela doutrina da paga (punição para o mal cometido, recompensa para o bem realizado. “A conduta ética e seu regramento possuem raízes no Além (Hades), de modo que o sucesso terreno (homicidas, tiranos, libertinos...) e o insucesso terreno (Sócrates...) não podem representar critérios de mensurabilidade do caráter de um homem (se justo ou injusto). No reino das aparências (mundo terreno, sensível), o que parece ser justo, em verdade, não o é; o que parece ser injusto, em verdade, não o é”, comentam Bittar e Almeida (p. 121).
Em Platão, se viu que a alma racional deve controlar as outras partes da alma, para que haja a harmonia da virtude. Caso isso não ocorra, prevalece o vício. Porém, esse plano é metafísico, e não terreno. A paidéia (formação) da alma deveria prepará-la para atingir o Bem Absoluto. Esta seria uma tarefa do Estado, para que o cidadão pudesse melhor aproveitá-lo e também melhor servi-lo. Essa visão de Platão sobre o papel do Estado na vida do cidadão pode ser vista como paternalista. Para o filósofo Karl Popper, a filosofia política de Platão é autoritária. Assunto para mais polêmicas, enfim, que podem ser temas de outro texto.


A Lei (Raul Seixas)





Todo homem tem direito de pensar o que quiser
Todo homem tem direito de amar a quem quiser
Todo homem tem direitode viver como quiser
Todo homem tem direitode morrer quando quiser
Direito de viver
viajar sem passarporte
Direito de pensar
de dizer e de escrever
Direito de viver pela sua própria lei
Direito de pensar de dizer e de escrever
Direito de amar,
Como e com quem ele quiser
A lei do forte
Essa é a nossa lei e a alegria do mundo
Faz o que tu queres ah de ser tudo da lei
Fazes isso e nenhum outro dirá não
Pois não existe Deus se não o homem
Todo o homem tem o direito de viver a não ser pela sua própria lei
Da maneira que ele quer viver
De trabalhar como quiser e quando quiser
De brincar como quiser
Todo homem tem direito de descansar como quiser
De morrer como quiser
O homem tem direito de amar como ele quiser
De beber o que ele quiser
De viver aonde quiser
De mover-se pela face do planeta livremente sem passaportes
Porque o planeta é dele, o planeta é nosso.
O homem tem direito de pensar o que ele quiser, de escrever o que ele quiser.
De desenhar, de pintar, de cantar, de compor o que ele quiser
Todo homem tem o direito de vestir-se da maneira que ele quiser
O homem tem o direito de amar como ele quiser, tomai vossa sede de amor, como quiseres e com quem quiseres
Há de ser tudo da lei
E o homem tem direito de matar todos aqueles que contrariarem a esses direitos
O amor é a lei, mas amor sob vontade
Os escravos servirão
Viva a sociedade alternativa
Viva Viva
Direito de viver, viajar sem passaporte
Direito de pensar de dizer e de escrever
Direito de viver pela sua própria lei
Direito de pensar de dizer e de escrever
Direito de amar, como e com quem ele quiser
Todo homem tem direito de pensar o que quiser
Todo homem tem direito de amar a quem quiser
Todo homem tem direito de viver como quiser
Todo homem tem direito de morrer quando quiser


Guardadas as devidas proporções, a letra desta música de Raul Seixas assemelha-se com as teorias dos sofistas, de mostrar que a Lei é fruto dos homens e não da natureza.



Toda forma de poder (Engenheiros do Havaí)




Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada.
(Yeah, yeah)
Fidel e Pinochet tiram sarro de você que não faz nada.
(Yeah, yeah)
E eu começo começo a achar normal que algumboçal atire bombas na embaixada.
(Yeah yeah, Uoh, Uoh)
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer...
Toda forma de poder é uma forma de morrer por nada.(Yeah, Yeah)
Toda forma de conduta se trasforma numa luta armada.(Uoh Uoh)
A história se repete mas a força deixa a história mal contada...
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer...
E o fascismo é fascinante deixa a gente ignorante e fascinada.
É tão fácil ir adiante e se esquecer que a coisa toda tá errada.
Eu presto atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada.
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer...
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer...
(Yeah Yeah Uoh)...


Há algumas passagens desta música dos Engenheiros do Havaí que mostram que discursos vazios podem dominar o cenário, seja político ou particular. Inspirada em Sócrates essa letra?



Juvenar (Karnak)



Tá frio aqui
Tá muito poluido
Eu tô triste eu tô borrecido
Tá feio aqui
Tá muita poluição
Tá fedido
Fumaça de caminhão
Eu tô cansado da cidade
Eu quero ir pro mato
tem de tudo lá
porco galinha pato
tem carroça
tem cachorro
tem carro de boi
correguinho sempre tem
Juvenar Juvenar
Vem tirar o leite
São 6 horas da manhã
Juvenar Juvenar
Juvenar Juvenar
You who are part of Karnak
Who fear the engine fumes
Which smells you may love
Should comprehend that the best things in life
Are health, food and love
You have to come to terms with yourself
For that, it doesn't matter where you are
You can be in a cardboard box under that bridge
Or in a palace in Madagascar
You can be in a faraway planet
Or inside this truck's coach-box, in any partIt's cold, it's stormy, it's raining
Much sadder is the rain inside our hearts
(tradução)
Vocês que fazem parte do Karnak
que temem a fumaça do motor
percebam que o melhor da vida
é saúde é comida é amor
você tem que estar bem consigo mesmo
prá isso não importa o lugar
pode ser até debaixo desta ponte
ou num palácio lindo em Madagascar
pode ser num planeta bem distante
ou na boleia deste caminhão
tá frio tá tempestade tá chovendo
muito mais triste é a chuva do nosso coração
oh oh
oh vida de gado povo marcado eh povo feliz


Essa música fala de se isolar da sociedade, buscando uma vida mais contemplativa, no campo - um local mais adequado e quieto para “se estar bem consigo mesmo”. Platão escreveu sobre um mundo ideal, que não se realiza na realidade material. Mas se quiser, pode falar: “Nessa aí, você forçou, ein, professor!”


Leia e aprenda mais:

ARANHA, M.L.A.; MARTINS, M.H.P. Filosofando. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003.
BITTAR, C.E.B.; ALMEIDA, G.A. Curso de Filosofia do Direito. 8. ed. rev. aum. São Paulo: Atlas, 2010.
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006.
DROSDEK, A. Filosofia para executivos. Campinas: Versus, 2009.
LEITE, F. T. Manual de Filosofia Geral e Jurídica – das origens a Kant. 2. ed. rev. amp. Rio de Janeiro: Forense, 2008.