sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Se essa rua, se essa rua fosse minha

Se essa rua, se essa rua fosse minha


Diz a popular cantiga de crianças:
"Se essa rua, se essa rua fosse minha
Eu mandava, eu mandava ela brilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes
Para o meu amor, para o meu amor passar
Nesta rua nesta, rua tem um bosque
Que se chama, que se chama solidão
Dentro dele, dentro dele mora um anjo
Que roubou, que roubou meu coração
E seu roubei, se eu roubei seu coração
É porque roubaste o meu também
Se eu roubei, se eu roubei seu coração
É porque é porque te quero bem."

Como seria a rua dessa música? Quem sabe o cenário seja o da rua desta fotografia, em que a paz e a tranquilidade parecem nocautear com demasiada propriedade nossos cantos mais escuros e solitários?


Crédito da foto: Roger Moko Yabiku

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A defesa técnica como elemento da liberdade substantiva. Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal

RESUMO
A defesa técnica não deve ser encarada como mera formalidade, embora tenha sido vista dessa maneira muitas vezes nos tribunais. O objetivo deste trabalho inédito é demonstrar a aplicabilidade da doutrina do economista Amartya Sen (Prêmio Nobel de Economia em 1998) no Direito Processual Penal brasileiro, introduzindo o conceito de defesa técnica realmente efetiva como princípio de hermenêutica da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal (STF) na declaração de nulidades, de modo a fulminar a defesa técnica que seja apenas formalmente efetiva. Também se deve conceber a defesa técnica como um elemento da liberdade substantiva suprida pelo advogado diante das eventuais deficiências culturais, educacionais e sócio-econômicas do seu cliente. O presente trabalho foi realizado por meio de pesquisa bibliográfica, com a tentativa de realizar conexões entre as teorias de Sen e o processo penal brasileiro. Conclui-se, preliminarmente, que a defesa técnica encarada somente no aspecto de efetividade formal, apesar de aplicar o Direito, comete mais injustiças que justiça propriamente dita. Portanto, a defesa técnica que seja somente formalmente efetiva, mas não realmente efetiva, deve ser considerada nulidade absoluta por haver cerceamento do direito constitucional da ampla defesa do acusado. A defesa técnica deve ser, ao mesmo tempo, formal e realmente efetiva, atendendo aos planos fático do mundo da vida e deontológico da Lei.
Palavras-chave: Direito Processual Penal, Defesa Técnica, Amartya Sen, liberdade substantiva, nulidades.


ABSTRACT
Technical defense should not be seen just a mere formality, as usually has been done in courts of Law. This exclusive paper intends to demonstrate that the doctrine of economist Amartya Sen (Nobel Prize of Economics in 1998) can be applied to the brazilian Criminal Law Process, introducing the concept of technical defense really effective as a interpretative principle to the "Súmula" 523 of the Brazilian Supreme Federal Court (STF) while recognizing nullities of the process, eliminating the mere procedure and formal technical defense. It also intends do demonstrate that technical defense as freedom implemented by a lawyer to help a client with eventual lack of cultural, educational, social and economical background. This paper, a bibliographic research, tries to realize connections between Sen’s theories and brazilian criminal law process. The first conclusion is that if technical defense is only formal, besides enforcing the Law, makes more injustice than justice. Therefore, the merely formally effective technical defense, but not really effective, should be considered absolutely null for obstructing the constitutional principle of the accusatory system. Technical defense should be, at the same time, formally and really effective in attention to the world of real life and the deontological world of the Law.
Keywords: Criminal Law Process, Technical Defense, Amartya Sen, freedom, nullities.


Leia o texto completo na revista jurídica Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13366

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

De volta à luz


Nossas vidas terrenas são apenas passagens pela matéria, pela luz mais densa e obscura que ofusca a verdade. Ao término da caminhada por este plano imperpétuo e carnal, nossas almas retornam para a luz sublime e quase imaterial que representa a paz e a totalidade de um mundo ideal, no qual tudo é perfeito e infalível.

Crédito da foto: Roger Moko Yabiku

domingo, 23 de agosto de 2009

ÉTICA, MORAL E DIREITO – BREVES CONCEITOS E DEFINIÇÕES


A palavra ética é polêmica. Muitas vezes, se utiliza dela sem que se tenha noção mais profunda do seu signficado. Usa-se e se abusa da ética para justificar, ou não, os mandos, desmandos, ou, ainda, desqualificar alguém. Em vez de argumentar lógica e racionalmente, é mais fácil xingar o outro de “anti-ético”. Mas como se não bastasse isso, há outros termos utilizados como sinônimo da ética em várias ocasiões. Um deles é a moral. Qual a diferença entre ética e moral? São a mesma coisa, ou cada uma tem particularidades que diferenciam o seu emprego, uma ou outra vez?
Não há consenso na doutrina. Uns dizem que ética é diferente de moral. Outros, que ética é a mesma coisa que moral. O que fazer diante desse dilema? Referenciar-se aos autores, é claro. Numa dessas definições, ética é a ciência, ou parte da filosofia, que tem com como objeto de estudo a moral. Então, se ética é ciência, deve ter como requisitos a neutralidade, a imparcialidade, a independência, a generalidade e a objetividade típicas do conhecimento científico.
A ética, portanto, não fornece respostas acerca da correção, ou não, de uma conduta ou intenção. Ela reflete sobre essa conduta ou intenção. Formula o porquê daquilo que se faz ser certo, ou errado. Os problemas éticos são eminentemente problemas teóricos. Dessa maneira, ética é teoria.
Por outro lado, a moral, objeto de estudo da ética, bebe na fonte da realidade em que se vive. Moral é um conjunto de princípios, normas, valores e condutas tido como obrigatório numa determinada sociedade e num determinado período de tempo. Nasce espontaneamente na sociedade e muitas vezes não é escrita, com exceção das morais religiosas baseadas em livros sagrados como a Bíblia, o Alcorão e a Torá. A moral é rica, variando de povo para povo e de geração para geração.
Devido a essa diversidade, o que é tido como moral numa comunidade pode ser considerado imoral em outra. E vice-versa. Ou, ainda, o que é considerado moral hoje pode ser considerado imoral daqui uns dez anos. E vice-versa. Aos exemplos. Usar minissaia no Brasil contemporâneo é algo considerado normal, porém, seria inimaginável em alguns países islâmicos, nos quais a liberdade da mulher é restringida a quase extremos. Mas e se fosse no tempo dos seus bisavôs? Essa mesma sociedade brasileira, de uns tempos atrás, consideraria o uso da minissaia imoral e inaceitável. Mesmo hoje dependendo do local onde se transita não é de bom tom usar minissaia. Causaria um frisson danado uma promotora de Justiça ou uma juíza de Direito andando, pelo fórum, de minissaia ou com uma blusa decotada.
Da mesma maneira, seria mais apropriado se dizer moral religiosa, em vez de ética religiosa. Pois a ética, como ciência, teria como pressupostos os requisitos já citados acima, e que não combinariam com a parcialidade e a particularidade das religiões. As religiões são abrangentes, ou seja, procuram explicar o mundo a partir do ponto de vista da sua moral, que, para cada uma delas, é “invencível”, inquestionável e indubitável.
Quantas vezes, ao se tentar impor uma moral abrangente sobre os de outra moral abrangente, ocorrem guerras? Eis as guerras de religião como exemplo. Um protestante dizer a um católico que o culto às imagens não serve coisa alguma decerto é pedir para brigar. E nessa briga uma agressão leva a outra e tudo, pasmem, justificado em nome da fé, ou de Deus.
A ética estuda esses problemas a partir de métodos científicos e filosóficos, sem “puxar sardinha” para um lado ou outro, mas com uma tentativa de explicar objetivamente as condutas que ganham significado moral.
O que o Direito tem a ver com isso? Direito, também como a moral, serve para regular comportamentos. Porém, é uma organização de força. Que raios seria isso? O Estado contemporâneo é possuidor do monopólio do uso da força. Só o Estado pode aplicar a força para reprimir ou prevenir condutas tidas como indesejáveis. Justamente por causa disso, há um limite ao uso da força para se evitar arbitrariedade por parte de quem está no poder. Esse limite é o princípio da legalidade, ou seja, o Estado só pode fazer aquilo que está prescrito em Lei.





Diferentemente da moral, o Direito é emanado de autoridade estatal competente, embasado principalmente na lei em sentido amplo, para regular os comportamentos tidos como mais “importantes”. Numa acepção mais simples, o Direito varia de País para País, constituindo-se de um sistema ordenado de normas estatais impostas coercitivamente à observância de todos, sob pena de sanção, em caso de desobediência.
Se na moral, a sanção – a punição, ou castigo – é optativa, no Direito ela o é – via de regra – obrigatória. E qual seria a punição, na moral? Bom, poderia ser uma reprimenda, um sermão, um “gelo”, sem jamais, no entanto, restringir os direitos da pessoa, como no caso do Direito. A sanção jurídica só pode ser imposta por autoridade estatal competente para tal intento: o Poder Judiciário. A sanção moral é aplicada por qualquer um da sociedade, ou por qualquer um tido como autoridade moral daquela sociedade.
Exemplo. João intencionalmente mata Pedro com uma facada. João é condenado e preso pelo crime de homicídio simples. Essa conduta é proibida pelo artigo 121 do Código Penal Brasileiro, cuja pena é a reclusão (prisão) de 6 a 20 anos. Neste caso, o castigo só poderá ser aplicado a João pelo Poder Judiciário, depois de ter ocorrido um processo judicial, em cujo final tenha sido condenado. A sociedade não pode “julgar”, muito menos condenar em João nesse caso.
Veja agora. José, de 10 anos, e Pedro, de 12 anos, são irmãos. João dá uma paulada em Pedro. A mãe deles, Joana, vê o ocorrido e resolve não deixar barato. Dá uma chinelada em José e o deixa de castigo. O pai dos meninos, Marcos, diz que o castigo dado pela mãe foi brando, o melhor seria dar uma cintada e botá-lo ajoelhado no milho. O avô dos garotos, Joaquim, na sua sabedoria de idoso, apenas sorri e aconselha os pais a não aplicarem castigo algum ao garoto, pois isso seria apenas coisa de criança.
No primeiro exemplo, a sanção deve ser obrigatoriamente imposta a João, porque este cometeu homicídio. Isso foi devidamente apurado por um processo judicial devidamente constituído, segundo os parâmetros constitucionais e legais. E, segundo a legislação, não é caso de perdoá-lo, mas de aplicar uma pena de prisão. Já no segundo, no entanto, José pode ser punido, ou não, segundo os critérios variados das “autoridades morais” subjacentes à questão.
Sacou, cara?



* Texto baseado no livro Ética, de Adolfo Sánchez Vázquez, 25 ed. Civilização Brasileira, 2004, para fins meramente ilustrativos, sem maiores preocupações com rigores doutrinários ou metodológicos.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A DIDÁTICA NO CONTEXTO EDUCACIONAL ATUAL


Este texto pretende explorar, de maneira breve, o conceito de Didática e sua aplicação no contexto educacional atual. Como lidar com os novos paradigmas que surgem a cada momento e com as situações de disparidade social, na qual os menos favorecidos cada vez têm menos acesso e menos preparo para o processo de aprendizado? Tenta-se articular o pensamento de autores na área de educação com o do economista Amartya Sen , principalmente com relação à sua idéia de desenvolvimento como liberdade, tanto do meio social quanto do indivíduo.

Contudo, cabe antes fazer realizar algumas conceituações, para posteriores associações com a realidade material. Pois bem, eis o primeiro conceito: “A Didática é uma seção ou ramo específico da pedagogia e se refere aos conteúdos do ensino e aos processos próprios para a construção do conhecimento. Enquanto a Pedagogia pode ser conceituada como a ciência e a arte da educação, a Didática é definida como a ciência e a arte do ensino.” (HAIDT, 2006, p. 13)

A partir do conceito, pode-se dizer que a Didática tem um caráter mais instrumental, que material, tal como se diferencia o Direito Processual do Direito Material. A Didática tem como objeto de estudo o ensino. E o ensino pode ser aplicado a diversas áreas do conhecimento. Então, a Didática se ocupa das formas ou maneiras de se ensinar. Entretanto, o ensinar não pode ser considerado em separado do aprender. Ensino e aprendizado, então, são duas faces da mesma moeda. Caso fosse focada somente no ensino, haveria um viés autoritário, tendo o professor como diretor de todo o processo de transmissão de conhecimento.

Ao se dar também enfoque na aprendizagem, abre-se uma perspectiva para que o educando também participe do processo educacional, que não se resumirá, inclusive, à simples transmissão do conhecimento, mas também à construção colaborativa do conhecimento. Nesse sentido, para Regina Célia Cazaux Haidt (2003, p. 13), “podemos afirmar que Didática é o estudo da situação instrucional, isto é, do processo de ensino e aprendizagem, e nesse sentido ela enfatiza a relação professor aluno”.

Num primeiro momento, a Didática tinha no aluno um sujeito a ser modelado, ou seja, a ser preenchido com informações, que seria submetido a baterias de exercícios e memorização de fórmulas e conceitos. Posteriormente, a Didática teve no aluno um ser a ser capacitado para ser livre. A mudança de enfoque é fundamental já que a Educação pode ser utilizada tanto para o controle social (PILETTI, 2006, p. 139-150) quanto para a transformação social ((Idem, 153-161).

Atualmente, no cenário de mudanças tecnológicas muito rápidas, o indivíduo deve aprender a aprender para não ficar ultrapassado e perdido diante da avalanche informacional que se lhe apresenta a cada fração de segundo. E ainda uma pessoa capaz de lidar com paradoxos tais como a fantástica qualidade de vida e de capacitação proporcionada pela acumulação de renda e por novos meios de comunicação como a internet e a exclusão social, a fome e a falta de oportunidades de emprego e ensino vistas nos países de terceiro mundo, como o Brasil. (MORAES, 2003, p. 113-116)

Há de se preparar o indivíduo para as transformações e para lidar com as contradições apresentadas pela contemporaneidade. De qualquer maneira, mesmo que se critique a realidade, os alunos deverão ser formados para lidar com ela, por mais que a critiquem. E os seus professores não estão isentos de uma formação num ambiente que leva em conta uma escolha ideológica. “Conforme o modelo de sociedade e de ser humano que defendemos, não atribuiremos as mesmas finalidades à escola e, portanto, não definiremos da mesma maneira o papel dos professores. (PERRENOUD, 2002, p. 12)

Uma vertente poderia defender que a educação deveria ser voltada para preparar indivíduos para o mercado de trabalho, então, a Didática assumiria a ideologia das corporações, como uma linha de montagem em massa de automóveis. Outra vertente poderia, por sua vez, salientar que o ser humano não pode ser tratado como um objeto, uma peça da engrenagem e que, por isso mesmo, deveria ser capaz de se mobilizar, por meio de uma educação libertadora, que requereria uma Didática que quebrasse o esquema das relações meio-fim das corporações, para que esse sujeito se veja como um fim em si mesmo.

Diante da realidade, obviamente não se poderia optar somente pela segunda vertente, pois contos de fadas não existem. Há de se tentar conjugar ambas para que o indivíduo seja eficiente para o mundo profissional e também seja crítico ao que vê em seu redor, para que não seja um mero repetidor de rotinas. Caso assim o seja, não terá como enfrentar as mudanças repentinas de paradigmas a que se submeterá em sua vida.

É notória a falta de conhecimento que assola o País. A quinta edição do Indicador Nacional de Analfabetismo (Inaf), divulgada pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Ação Educativa, contém números assoladores:

“No Brasil, 75% das pessoas na faixa etária dos 15 aos 64 anos não conseguem ler e escrever plenamente. O número inclui os analfabetos absolutos – sem qualquer habilidade de leitura e escrita – e os 68% considerados analfabetos funcionais. Estes identificam letras e palavras, mas não conseguem utilizá-las no cotidiano e têm dificuldades para compreender e interpretar textos. Apenas um em cada quatro brasileiros consegue ler, escrever e utilizar essas habilidades para continuar aprendendo.” (LOIOLA, 2006, grifos nossos)

O educador brasileiro contemporâneo deve ter uma Didática que leve em conta esses dados, só assim poderá elaborar estratégias que possam “resgatar” o sujeito preso pela apatia e por anos de falta de exercício mental. Para a compreensão desse quadro, a doutrina de Amartya Sen tem muito a colaborar. Como diz Sen (2000, p. 53): “O processo de desenvolvimento, quando julgado pela ampliação da liberdade humana, precisa incluir a eliminação da privação dessa pessoa.”




Para Sen, a falta de liberdade substantiva relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que priva “as pessoas de saciar a forme, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de modo apropriado, de ter acesso a água tratada ou saneamento básico“. E ainda: “Em outros casos, a privação de liberdade vincula-se estreitamente à carência de serviços públicos e assistência social, como, por exemplo, a ausência de programas epidemiológicos, de um sistema bem planejado de assistência médica e educação ou de instituições eficazes para a manutenção da paz e da ordem locais. Em outros casos, a violação da liberdade resulta diretamente de uma negação de liberdades políticas e civis por regimes autoritários e de restrições impostas à liberdade de participar da vida social, política e econômica da comunidade.” (SEN, 2000, p. 18).

Com relação ao conceito de liberdade substantiva, Sen afirma que são aquelas liberdades exigidas para o indivíduo ter uma “vida que tenha razão de valorizar” (2000, p. 94). Leva em conta as oportunidades reais de os indivíduos atingirem seus objetivos, que exige, além dos bens primários, uma série de “características pessoais relevantes que governam a conversão de bens primários na capacidade de a pessoa promover seus objetivos”. (SEN, 2000, p. 95)

Na doutrina de Sen, as pessoas são dotadas de funcionamentos , que contêm estados (beings) e ações (doings) que influenciam no modo em que vivem. “Os funcionamentos relevantes podem variar desde coisas elementares como estar nutrido adequadamente, estar em boa saúde, livre de doenças que podem ser evitadas e da morte prematura, etc., até realizações mais complexas, tais como ser feliz, ter respeito próprio, tomar parte na vida da comunidade, e assim por diante.” (SEN, 2001, p. 79)

A combinação dos funcionamentos – não necessariamente todos ao mesmo tempo – é chamada de capacidade (capability). Ademais, não se trata de qualquer combinação de funcionamentos. São combinações alternativas de funcionamentos cuja realização seja possível para a pessoa. Para Sen (2000, p. 95), a capacidade é a “liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos”. Um adendo para expormos um exemplo no intuito de apresentar o conceito de “conjunto capacitário” .

Assim, “conjunto capacitário” consiste nos “vetores de funcionamentos alternativos dentre os quais a pessoa pode escolher”. (SEN, 2000, 96) O conjunto capacitário seria a liberdade que uma pessoa teria para escolher as combinações alternativas dentre funcionamentos. Tomando como base o exemplo anterior, o conjunto capacitário do primeiro sujeito é maior que o do segundo sujeito. No primeiro, há possibilidade de escolher as combinações de funcionamentos, na segunda, não. Esta empreitada tem vital importância, pois as combinações de funcionamentos, segundo Sen, refletem as suas realizações efetivas (o que a pessoa realmente faz), enquanto o conjunto capacitário aponta as alternativas que se tem (oportunidades reais para obter bem-estar). Com relação às capacidades, na realização do bem-estar, Sen explica:

“A relevância da capacidade de uma pessoa pra seu bem-estar surge de duas considerações distintas porém inter-relacionadas. Primeiro, se os funcionamentos realizados constituem o bem-estar de uma pessoa, então a capacidade para realizar funcionamentos (quer dizer, todas as combinações alternativas de funcionamentos que uma pessoa pode escolher ter) constituirá a liberdade da pessoa – as oportunidades reais – para ter bem-estar. Essa liberdade de bem-estar (well-being freedom) pode ter relevância direta na análise ética e política. (...) A segunda conexão entre bem-estar e capacidade consiste diretamente em fazer o próprio bem-estar realizado depender da capacidade para realizar funcionamentos. Escolher pode em si ter uma parte valiosa do viver, e uma vida de escolha genuína com opções representativas pode ser concebida – por essa razão – como mais rica. Nesta concepção, pelo menos alguns tipos de capacidade contribuem diretamente para o bem-estar, tornando a vida da pessoa mais rica de oportunidades de escolha refletida. Mas mesmo quando a liberdade na forma de capacidade é valorada apenas instrumentalmente (e o nível de bem-estar não é visto como dependente da extensão da liberdade de escola como tal), a capacidade para realizar funcionamentos deve ser, ainda assim, uma parte importante da avaliação social. O conjunto capacitário fornece informação sobre os vários vetores de funcionamentos que estão ao alcance de uma pessoa, e esta informação é importante independentemente de como exatamente o bem-estar é caracterizado.” (SEN, 2001, p. 80-81)

Numa conclusão preliminar, portanto, dir-se-ia que a Didática no contexto atual deve conjugar a preparação do indivíduo para o mercado de trabalho e, ao mesmo, tempo para ter consciência crítica sobre o que se passa em seu redor. A doutrina de Amartya Sen claramente explica que o indivíduo, no contexto contemporâneo, sem se capacitar e sem ter o mínimo de educação não é livre. No entanto, há de se fazer a devida adaptação da sua doutrina, assim como as demais advindas do exterior, para abarcar a realidade brasileira. E tudo isso deve ser feito levando em consideração o educando não como um objeto, mas um ser pensante que precisa desenvolver suas capacidades, e continue a desenvolvê-las por si mesmo.


BIBLIOGRAFIA

HAIDT, Regina Cèlia Cazaux. Curso de Didática Geral. 7. ed. 8. reimp. São Paulo: Ática, 2006.
LOIOLA, Mariana. Longo Aprendizado. Ajuda Brasil. Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2006. Disponível em: http://www.ajudabrasil.org/noticias.asp?idNoticia=772. Acesso em 15 de novembro de 2006. 15h38’.
MORAES, Maria Cândida. O Paradigma Educacional Emergente. 9. ed. Campinas: Papirus, 2003.
PERRENOUD, Philippe. 10 Novas Competências para Ensinar. Porto Alegre: Artmed, 2000.
____; THURLER, Mônica Gather; MACEDO, Lino de; MACHADO, Nilson José & ALESANDRINI, Cristina Dias. As Competências para Ensinar no Século XXI: a formação dos professores e o desafio da avaliação. Porto Alegre: Artmed, 2002.
PILETTI, Nelson. Sociologia da Educação. 18. ed. 7. reimp. São Paulo: Ática, 2006.
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como Liberdade. 5ª reimp. Tradução Laura Teixeira Motta. Revisão técnica Ricardo Donimelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Traduzido de: Development as Freedom.
____. Desigualdade Reexaminada. Tradução por Ricardo Donimelli Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2001. Traduzido de: Inequality Reexaminated.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

RAZOÁVEL EM VEZ DE VERDADEIRO: O CONSTRUTIVISMO POLÍTICO DE JOHN RAWLS




I - INTRODUÇÃO

Neste texto, tentar-se-á associar a problemática da verdade com o neocontratualismo de John Rawls. Trata-se de uma empreitada entre a teoria do conhecimento e a filosofia política, demonstrando-se que as verdades absolutas no âmbito prático da vida cotidiana podem causar intolerância e conflitos. De acordo com Philippe Van Parijs
[i] construtivismo “se define pelo recurso à construção de situações hipotéticas tais que o resultado das escolhas dos atores nelas imersos é necessariamente justo”. Trata-se de se construir um procedimento de “barganha” adequado, que teria, segundo Van Parijs, o formato de uma teoria em duas etapas. Na primeira etapa, os contratantes fariam uma especificação daquilo que teriam como a “base de comparação não-cooperativa julgada pertinente”, ou seja, o “estado de natureza”, enquanto, na segunda, as partes determinariam qual seria o procedimento adequado para dividir o excedente ocasionado pela cooperação (em outras palavras, os termos do contrato).[ii] A imparcialidade teria função de perseguir a universalidade, com regras de respeito mútuo igual e de igual consideração pela pessoa humana:

“Na tradição da imparcialidade, a perspectiva construtivista consiste em construir uma situação que incorpore uma exigência de universalidade. Ela pode repousar, como em Harsanyi (1953), Rawls (1971), ou Sterba (1980), sobre a construção de uma posição ‘posição original’ em que cada agente persegue seu interesse pessoal sob um ‘véu de ignorância’ que o impede de conhecer suas características particulares; ou como em Mead (1934) ou Kohlberg (1973) reapropriados por Habermas (1983), sobre um jogo de papéis que consiste em cada um adotar o ponto de vista do outro; ou ainda como em Ackerman (1980), sobre um diálogo neutro submetido a regras que impõem não somente um igual respeito pelas diversas concepções da boa vida, mas também a exigência de não considerar que ninguém valha menos do que outro.” (Van Parijs, 1997, p. 218, grifo nosso)


II - O CONSTRUTIVISMO

A metáfora da “construção” foi usada largamente no século XX, nos escritos e na teoria filosófica. Numa simples argumentação, a título demonstrativo, é um pensar que certas entidades são complexos, compostas por outras entidades mais elementares. O construtivismo de Rawls articula três concepções-tipo: concepção política de pessoa, concepção de sociedade bem ordenada e a concepção da “posição original”, que faz a interface entre as duas primeiras. A “posição original”, portanto, pode ser concebida como um procedimento de construção para justificar os princípios da justiça, comenta Onora O’Neill. Ao longo de sua obra, John Rawls desenvolveu sua teoria e modificou suas visões de como os princípios éticos poderiam ser construídos, como a “posição original” poderia ser plausível e aceitável, e quais audiências poderiam ser oferecidas razões para aceitar a “posição original”.
[iii]
As justificações fundamentais para a “posição original”, para os princípios e instituições da justiça, podem ser elaboradas por indivíduos com doutrinas morais abrangentes variadas (que podem contrastar sobremaneira).
A “posição original”, então, seria o objeto da contingência, já que o “consenso por justaposição” (“overlapping consensus”) não teria forças suficientes no intuito de garantir convergências nas razões para a afirmativa dessas doutrinas. Uma total falta de razões compartilhadas para aceitar a “posição original” poderia destroçar a vida política, mas, por outro lado, os cidadãos – diante de práticas democráticas – podem apoiar-se num rol mais limitado de estratégias justificatórias, que são “políticas”, em vez de fundamentais.
[iv] Aí, se tem também a idéia de razão pública, que é primordial num regime democrático constitucional, de uma sociedade bem ordenada:

“A justiça como eqüidade, conforme ele (Rawls) argumenta no seu trabalho mais recente, deve ser vista como uma concepção ‘free-standing’, que está em equilíbrio reflexivo não somente com várias doutrinas morais compreensivas, mas com idéias centrais de uma cultura democrática pública na qual uma forma de razão pública deve ser compartilhada (e possivelmente somente por) colegas cidadãos (fellow citizens). Esta concepção de razão pública providencia a moeda em comum usada nos argumentos relativos à justiça, entre os colegas cidadãos (fellow citizens), mas não se constitui numa moeda corrente universal.”
[v]

O construtivismo, revisto por Rawls em “Liberalismo político”, é político, e não metafísico.
[vi] Sua teoria da justiça como eqüidade, então, distanciou-se de ser uma doutrina moral abrangente, como fora preconizado em “Uma teoria da justiça”. Percebe-se, ademais, um maior grau de pragmatismo e realismo na reformulação teórica de Rawls, que fez uma adequação da sua obra à realidade política de uma sociedade munida de um regime democrático constitucional.


III - A VERDADE NO CONSTRUTIVISMO DE RAWLS

Esse novo posicionamento, por parte de Rawls, leva a novas considerações a respeito da teoria da justiça como eqüidade. A mais importante delas é que não se usa, nem se nega o conceito de verdade, mas se emprega o conceito de razoável, aquilo que possibilita um “consenso por justaposição” de várias doutrinas abrangentes razoáveis. Porém, que o construtivismo político não procura embates com qualquer das doutrinas abrangentes, “afirma somente que seu procedimento representa uma ordem de valores políticos que parte dos valores expressos pelos princípios da razão prática, conjugados com concepções de sociedade e pessoa, para chegar aos valores expressos por certos princípios de justiça política”.
[vii]

“A primeira característica, como já observamos, é que os princípios de justiça política (conteúdo) podem ser representados como resultado de um procedimento de construção (estrutura). Nesse procedimento, os agentes racionais, em seu papel de representantes dos cidadãos e sujeitos a condições razoáveis, selecionam os princípios que regulam a estrutura básica da sociedade.
A segunda característica é que o procedimento de construção baseia-se essencialmente na razão prática, e não na razão teórica. Tendo em mente a forma como Kant faz essa distinção, dizemos: a razão prática preocupa-se com a produção de objetos de acordo com uma concepção desses objetos, como, por exemplo, a concepção de um regime constitucional justo considerado como o objetivo da atividade política – ao passo que a razão teórica diz respeito ao conhecimento de determinados objetos. Observe que dizer que o procedimento de construção se baseia essencialmente na razão prática não significa negar que a razão teórica tenha um papel. Ela dá forma às crenças e ao conhecimento das pessoas racionais que participam da construção; e essas pessoas também empregam suas capacidades gerais de raciocínio, inferência e julgamento ao selecionar os princípios da justiça.



A terceira característica do construtivismo político é utilizar uma concepção bem complexa de pessoa e sociedade para dar forma e estrutura à sua construção. Como vimos, o construtivismo político vê a pessoa como membro de uma sociedade política entendida como um sistema eqüitativo de cooperação social de uma geração para outra. Supõe-se que as pessoas disponham das duas faculdades (poderes) morais conjugadas a essa idéia de cooperação social – a capacidade de ter senso de justiça e concepção do bem. Todas essas estipulações e outras mais são necessárias para chegar à idéia de que os princípios de justiça resultam de um procedimento adequado de construção. (...)
Como antes, acrescentamos aqui também uma quarta característica: o construtivismo político especifica uma idéia do razoável e aplica essa idéia a vários objetos: concepções e princípios, juízos e fundamentos, pessoas e instituições. Em cada caso, também deve, é claro, especificar os critérios para julgar se o objeto em questão é razoável. No entanto, o construtivismo não usa (nem nega), como o faz o intuicionismo racional, o conceito de verdade: não questiona esse conceito nem diria que o conceito de verdade e sua idéia do razoável são a mesma coisa.” (LP, III, § 1, p. 138-139, grifos nossos)

A correção de um julgamento não tem como referencial um fim último (verdade absoluta), ou uma intuição de difícil conceituação. O julgamento correto assim o será porque resulta de um procedimento razoável e racional de construção, quando corretamente formulado e corretamente seguido.


IV - AS VERDADES ABSOLUTAS E AS MINORIAS

Sociedades que se edificam em torno de doutrinas religiosas e filosóficas dificilmente teriam uma concepção de justiça nos moldes do construtivismo político. As concepções de justiça dessas sociedades podem ser frágeis, porque certas regras e procedimentos poderiam estar conjugados - em vez a concepção política de pessoa e sociedade - a crenças religiosas, ou filosóficas, ou outras crenças públicas compartilhadas não razoáveis. Qual o perigo disso? Coloca-se em risco a integridade do indivíduo e das minorias, face à concepção de justiça que leva em consideração um fim último, cuja doutrina abrangente não é razoável, então, não compatível com uma concepção política de justiça. Em vez de legitimar um consenso, alerta Rawls, a ordem jurídica (as Leis) seria utilizada, nesta perspectiva, para coagir o indivíduo, não pela sua adesão consciente, mas por sua incapacidade de reagir. Na concepção política de justiça, oriunda do construtivismo político, os princípios da razão prática são conjugados com as concepções de pessoa e de sociedade, que adotam uma forma requerida pela razão prática para sua aplicação.


V - CONCLUSÃO

O construtivismo político não se propõe a explicar os valores morais, em geral, ou as questões da verdade. Diante da pluralidade de doutrinas e da possível “conciliação” com finalidades políticas, se tem – partir do construtivismo político – uma base pública de justificação. Há de se atentar para o caso das doutrinas abrangentes não-razoáveis, ou irracionais (às vezes, insanas), como diz o próprio Rawls, que podem minar esforços para se chegar a um “consenso por justaposição” de doutrinas razoáveis. O construtivismo político não realiza enunciados sobre a verdade moral, não a endossa, nem a rechaça. A conclusão, aliás não poderia ser melhor, pode ser delineada com as próprias palavras de Rawls:

“A vantagem de estar no âmbito do razoável é que só pode haver uma doutrina abrangente e verdadeira, embora, como vimos, existam muitas razoáveis. Depois de aceitarmos o fato de que o pluralismo razoável é uma condição permanente da cultura pública sob instituições livres, a idéia do razoável é mais adequada como parte da base de justificação pública de um regime constitucional do que a idéia de verdade moral. Defender uma concepção política como verdadeira e, somente por isso, considerá-la o único fundamento adequado da razão pública é uma atitude de exclusão e até de sectarismo, que, com certeza, fomentará a divisão política.” (LP, III, § 8, p. 176, grifo nosso)


VI - BIBLIOGRAFIA

O’NEILL, Onora. Constructivism in Rawls and Kant. In: FREEMAN, Samuel (ed.). The Cambridge companion to Rawls. 1. ed. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2003.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 1. ed. 2. reimpressão. São Paulo (SP): Martins Fontes, 1997.
____. Justiça e democracia. São Paulo (SP): Martins Fontes, 2000.
____. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo (SP): Editora Ática, 2000b.
____. Justice as fairness: a restatement. Cambridge, Massachussetts e Londres, Inglaterra: Harvard University Press, 2001.
VAN PARIJS, Philippe. O que é uma sociedade justa? São Paulo (SP): Editora Ática, 1997.


_________________________________________________________________________



[i] Phillippe VAN PARIJS, O que é uma sociedade justa?, p. 217.
[ii] Ibid.
[iii] Onora O’NEILL, Constructivism in Rawls and Kant, in: Samuel FREEMAN (ed.), The Cambridge companion to Rawls, p. 349.
[iv] Ibid.
[v] “Justice as fairness, he argues in his later work, should be seen as ‘free-standing’ conception, which is in reflective equilibrium not only with various comprehensive moral views but with the central ideas within a public democratic culture within which a form of public reason may be shared by (and possibly only by) fellow citizens. This conception of public reason provides the common coin used in arguments about justice among fellow citizens, but it provides no universal currency.” (O’Neill, 2003, p. 349-350, grifo nosso)
[vi] LP, III, p. 135.
[vii] LP, III, p. 140.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Invasão alienígena

Invasão alienígena

Nunca sabemos ao certo quem nos observa. Realmente, estamos sós no universo? A prepotência humana nos leva a crer que somos a espécie escolhida e eleita para conduzir os rumos do planeta. Mas e se as coisas não fossem bem assim? A perplexidade do olhar sobre o cotidiano seria deveras afetado com o impacto de uma invasão alienígena.
Crédito da foto: Roger Moko Yabiku

domingo, 16 de agosto de 2009

Modelos de educação homérica, socrática-platônica e sofista


I - INTRODUÇÃO

Este texto versa suscintamente sobre a questão da educação nos modelos homérico, socrático-platônico e sofista, estabelecendo suas características e contribuições para a educação contemporânea. Não se trata de uma obra de maior fôlego, pois demandaria maios tempo de pesquisa e reflexão acerca dos dados coletados. Apenas, tenta-se trazer à tona discussões acerca dos papéis historicamente desempenhados por esses pensadores no contexto da educação, tentando realizar um liame entre as suas doutrinas para que se possa realizar o debate num nível academicamente aceitável e coerente com a realidade contemporânea.
No primeiro tópico, discorre-se sobre o problema da educação no poeta Homero, que era utilizada pelos gregos para fins didáticos, principalmente a partir das suas obras “Ilíada” e “Odisséia”. Há uma tentativa de explicar o mundo e os acontecimentos a partir de relatos históricos, desvencilhando-se, porém, não totalmente do mito. O homem guerreiro e valoroso que dominava o cenário através de feitos heróicos era um modelo de excelência a ser atingido, em prol não só de si mesmo (pelo reconhecimento dos seus feitos), mas para toda a “pólis” em si.
Em seguida, disserta-se sobre o modelo educacional socrático-platônico. Sócrates não deixou produção escrita, sendo retratado por seus discípulos, em especial Platão. Daí, a dificuldade em se diferenciar o que era do ensinamento original de Sócrates e o que foi difundido pelo Sócrates de Platão. Em vez do domínio do mundo exterior, o modelo socrático-platônico tem como objetivo a conquista do mundo interior, pelo descobrimento de si mesmo, mesmo que isso signifique ignorar a realidade material e as convenções tradicionalmente estabelecidas.
Posteriormente, se escreve sobre a importância dos sofistas na educação, da sua influência na concepção científica desse processo e da sua influência até os dias atuais. Não se pretendeu abordar aspectos do conflito entre Sócrates e os sofistas, mesmo porque muitas das concepões a respeito destes últimos são carregadas de preconceitos.


II - A EDUCAÇÃO HOMÉRICA



Homero tido historicamente como o primeiro grande poeta grego teria vivido em no século IX a. C., concomitantemente ao surgimento da escrita na Grécia antiga. Suas principais obras são “Ilíada” e “Odisséia”, a primeira sobre a guerra entre grego e troianos e a segunda, sobre o retorno do rei Odisseu da guerra de Tróia para Ítaca. No entendimento de Werner Jaeger (2003, p. 43), a poesia de Homero posicionou-o como o primeiro grande modelador da humanidade grega. A primordial preocupação com a poesia, no entanto, era a estética, a questão ética era acidental, subseqüente. “É claro que essa frivolidade artística deliberada tem por sua vez efeitos ‘éticos’, pois desmascara sem qualquer consideração os valores falsos e convencionais, e atua como uma crítica purificadora.” (JAEGER, 2003, p. 44)
Ensina Jaeger que Homero se utilizava do mito para exemplificar e explicar situações inúmeras do cotidiano da época, principalmente na considerações de ordem moral. Em Homero, a ética é aristocrática
[i], tendo em vista que exalta os feitos dos guerreiros – geralmente oriundos da nobreza –, mesmo que implique num auto-sacrifício, mas realizado em nome de um ideal maior, a soberania da polis, numa comunidade de cidadãos comuns entre si, mas que, de certa maneira, ignoravam o outro, o bárbaro, o não civilizado. Como se explica isso? “A expressão-chave aqui é ‘homens de outras terras’. As leis da comunidade civilizada só se aplicam dentro dela. Fora de seus domínios, outras terras podem ser livremente saqueadas. O que foi a guerra de Tróia senão uma gigantesca operação de saque? Na verdade, a lei e a ordem dentro da comunidade podem ter o efeito de intensificar a selvageria reprimida dessa comunidade. A guerra talvez seja uma maneira positiva de liberar os impulsos selvagens fora da comunidade, como especulou Freud após a carnificina da Primeira Guerra Mundial em seu ensaio O mal-estar na civilização. Freud acreditava que os impulsos anárquicos que os homens reprimem para possibilitar a vida em comunidade encontram válvula de escape na mortandade em massa da guerra.” (STONE, 2005. p. 47)
O objetivo da educação era o bem de todos e não apenas a glória pessoal, como ser verificava inclusive nos jogos e competições. “Desde a infância, cada grego percebia em si o desejo ardente de, na competição entre cidades, ser um instrumento para a consagração da sua cidade: isso acendia o seu egoísmo, mas, ao mesmo tempo, o refreava e limitava. Por isso, os indivíduos da Antigüidade eram mais livres, porque seus objetivos eram mais próximos e alcançáveis. O homem moderno, ao contrário, tem a infinidade cruzando o seu caminho em toda parte, como o veloz Aquiles na parábola do eleata Zenão: a infinidade o obstrui, ele nunca alcança a tartaruga.” (NIETZSCHE, 2005, p. 73)
Importante notar que Homero tem um pensamento “filosófico” acerca da natureza humana e das leis eternas que governam o mundo, tentando abarcar tudo que é essencial à vida humana, pois, de acordo com Jaeger (2003, p. 76-77), “contempla todo o conhecimento particular à luz do seu conhecimento geral das coisas”. Preliminarmente, pode-se dizer que a educação, em Homero, visa moldar a comunidade segundo as qualidades de destreza e heroísmo cunhadas na aristocracia. A “arete” homérica visa a ética acidentalmente, mas essencialmente busca o belo, a realização do cidadão pela integração ao ideal da “pólis”, de se fundir com o “télos” vigente pelas conquistas provadas em batalha ou algum outro feito heróico.


III - A EDUCAÇÃO SOCRÁTICO-PLATÔNICA



A educação do homem grego pelo seu próprio esforço foi a tônica do pensamento educacional de Sócrates. Os ensinamentos de Sócrates que escoam nas academias contemporâneamente foram imortalizados nos seus escritos, principalmente pelo mais célebres deles: Platão. Por isso, muitas vezes, há de se falar de um modelo socrático-platônico. Sócrates não deixou produção escrita, sendo retratado pela ótica de Platão
[ii], o qual, por sua vez, pode ter “colocado palavras” na boca do seu mestre. No entanto, esta problemática não faz parte deste estudo, apenas a questão educacional no prisma socrático-platônico. “Sócrates é o mais espantoso fenômeno pedagógico da história do Ocidente.” (JAEGER, 2003, p. 512)
A ação educativa de Sócrates, ensina Jaeger (2003, p. 538), é explicada por Platão e Xenofonte através dos seus confrontos com os sofistas. Sócrates não tinha tatno interesse na filosofia da natureza, mas nos problemas dos homens, com se pode ver: “Assim, pois, a redobrada atenção que Sócrates dedica às coisas humanas atua como princípio seletivo no reino dos valores culturais vigentes até então.” (JAEGER, 2003, p. 539) Pretende, então, restruturar uma conexão entre a cultura espiritual com a cultura moral. Sua ação educação política era eminentemente política, pois seus maiores rivais – os sofistas – eram educadores da elite e dos círculos de poder. Caso não houvesse intenção política nos seus ensinamentos, Sócrates não teria chamado atenção na Atenas da época. “A grande novidade que Sócrates trazia era buscar na personalidade, no caráter moral, a medula da existência humana, em geral, e a da vida coletiva, em particular.” (JAEGER, 2003, p. 540)
A partir da ênfase na personalidade, da busca interior dos conhecimentos encravados, porém, adormecidos, Sócrates pretende dar uma noção, aos alunos, de que é necessário autodomínio, para que possam desempenhar suas tarefas com propriedade. Não se trata somente de se submeter às leis, mas de ter algo dentro de si que lhe permita diferenciar o certo do errado, não de maneira mecânica, imposta, mas reflexiva, notadamente filosófica. “Foi graças a Sócrates que o conceito de autodomínio se converteu numa idéia central da nossa cultura ética. Essa idéia concebe a conduta moral como algo que brota do interiro do próprio indivíduo e não como a mera submissão exterior à lei, tal qual a exigia o conceito tradicional de justiça.” (JAEGER, 2003, p. 548)
Despontou a partir de Sócrates um novo conceito de liberdade, que consistia no domínio interior. Em Platão, a versão é a do domínio do espírito sobre o instintos, o que reflete na sua obra política, já que seu Estado tem um conceito puramente interior de justiça, tal como a coincidência do ser humano com a lei que habita dentro de si mesmo, explica Jaeger (2003, p. 549) Assim, em vez da força exterior e da coragem em batalha do modelo homérico, o modelo socrático-platônico salienta a necessidade de uma força interior, somente atingível quando o homem limita seus desejos à esfera do possível, do que ele pode alcançar. “Só o sábio, que sabe dominar os monstros selvagens dos instintos, dentro de si próprio, é verdadeiramente autárquico. É ele quem mais se aproxima da divindade, a qual não tem necessidade.” (JAEGER, 2003, p. 552)
Há uma separação entre o corpo e a alma na consideração socrático-platônica
[iii], sendo que o culto ao corpo e ao belo – visto na doutrina homérica – é separado do desenvolvimento do caráter, algo mais atinente à alma. Sócrates tenta esclarecer e elucidar os preconceitos vigentes, mesmo aqueles arraigados pela tradição. O caráter, então, deve ser tratado com esmero

“Sócrates está convencido de que, se eles fosse dada a educação adequada, eles atingiriam por eles próprios as maiores alturas e fariam felizes, ao mesmo tempo, os outros homens. Àqueles que desprezam o saber e tudo confiam às suas qualidades naturais faz compreender que são estas as que mais precisam ser cultivadas, tal como os cavalos e cães de melhor qualidade, que a natureza dotou de raça mais apurada e de melhor temperamento, precisam ser amestrados e disciplinados com o maior rigor desde a nascença; é que se não fossem treinados e disciplinados acabariam por se tornar piores que os outros. São precisamente as naturezas mais bem-dotadas que precisam desenvolver o seu discernimento e o seu juízo crítico, para poderem dar os frutos correspondentes aoseu talento. E aos ricos, que julgam poder desprezar a cultura, abre os olhos para que vejam a inutilidade de uma riqueza que não se sabe empregar ou se emprega para mau fim.” (JAEGER, 2003, p. 558)

Há necessidade premente de se ter, primeiro, noção da própria ignorância, para a partir daí galgar os passos do conhecimento de si próprio, das próprias forças. “Mas, com a prova convincente da ignorância do homem que julga saber, abre o caminho para um conceito do saber fiel ao seu postulado e que constitui realmente a mais profunda força de caráter do homem. A existência desse saber é para Sócrates uma verdade de firmeza absoluta, pois se demonstra ser ela a base de todo o pensamento e de toda a conduta moral, assim que indagamos as premissas destes.” (JAEGER, 2003, p. 565)
A educação desde a mais tenra idade deveria direcionar os novos para o conhecimento de si mesmo e da verdade, sem que houvesse influência e das fábulas baseadas nos mitos, como na etapa homérica, justamente para que pudessem diferenciar a mentira da verdade, a realidade da fantasia. Nas palavras de Platão (2007, p. 67), em A República, Sócrates explica: “É que quem é novo não é capaz de distinguir o que é alegórico do que o não é. Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indelével e inalterável. Por causa disso, talvez, é que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histórias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possível, orientadas no sentido da virtude.”


IV - OS SOFISTAS E SUA INFLUÊNCIA EDUCACIONAL

Apesar da importância de Sócrates e Platão para a educação, foram os sofistas considerados os fundadores da ciência da educação, estabelecendo os fundamentos da pedagogia. Converteram a educação numa técnica, salienta Jaeger (2003, p. 349), assim como as demais artes, no intuito de serem utilizadas nos diversos compartimentos separados das facetas das vidas dos cidadãos. Os sofistas, segundo Protágoras, eram especialistas na techne política, a ser cultivada e difundida como a verdadeira educação “e o vínculo que conserva unidas a comunidade e a civilização humanas”, nos dizeres de Jaeger. (2003, p. 350) No entanto, nem todos sofistas obtinham posição de destaque na educação de governantes ou algo do tipo. Dessa forma, muitos se satisfaziam em transmitir sua sabedoria. Isso contribuiu deveras para que grande parte dos cidadãos de Atenas fossem, à época, alfabetizados.

“Desde cedo Atenas conseguiu proporcionar educação elementar a todos os cidadãos – ao menos, desde um século antes de Sócrates – e tudo indica que a maioria era alfabetizada. Isso era reflexo da ascensão da democracia. Mas a instrução superior continuava sendo monopólio da aristocracia, até que apareceram os sofistas. Eles provocaram o antagonismo das classes superiores ao ensinarem as artes da retórica – pois a capacidade de falar bem em público era fundamental para a participação política da classe média nos debates da assembléia e na sua ascenção aos cargos mais elevados da administração pública da cidade. Além disso, a retórica era necessária também – talvez mais ainda – para o cidadão defender-se nos tribunais.” (STONE, 2005, p. 64)

Os sofistas plantaram os fundamentos do humanismo, separando poder e o saber técnico e a cultura propriamente dita. A educação humana é ordenada sobre o reino da técnica, ou seja, num sentido mais contemporâneo, da civilização. (JAEGER, 2003, p. 350) A cisão entre religião e cultura se dá na época dos sofistas, que contribuíram, inclusive, para uma idéia mais consistente e consciente de educação, já que a crença nos mitos e divindades começa a se desmoronar. Aí, se faz premente a convicção de uma nova certeza, a consciência da formação humana, cuja tarefa lhe era cabida historicamente. “O ideal da educação humana é para ele a culminação da cultura, no seu sentido mais amplo. Tudo se engloba nela, desde os primeiros esforços do homem para dominar a natureza física até o grau supremo da autoformação do espírito jumano. Nesta profunda e ampla fundamentação do fenômeno educacional, mais uma vez se manifesta a natureza do espírito grego, orientado par aquilo que de universal e total há no ser.” (JAEGER, 2003, p. 365)
Os sofistas estruturaram o sistema de educação superior grego que até hoje exerce influência, como, por exemplo, nos liceus franceses. Essa influência se dá por causa da sua versatilidade e da não exigência de se conhecer o idioma grego. Durante muito tempo a gramática, a dialética e a retórica eram fundamentos da educação formal ocidental. Eram o “trivium”, dos sofistas, que junto ao “quadrivium”
[iv], constituiam as sete artes liberais.



V – CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modelo homérico de educação enfatiza o desenvolvimento de pessoas voltadas para o heroísmo, para a glória da pátria na qual estavam inseridos. A busca do belo, do honrado e da reputação eram mais essenciais que o mundo interior socrático-platônico. Este, por sua vez, pretende que o indivíduo conheça o seu interior, suas fraquezas, de modo a descobrir o conhecimento e poder enfrentar a realidade exterior.
O primeiro modelo é mais cívico que o segundo, no entanto, há de se ressaltar que naquele há um contexto de guerras e inimigo externo, no segundo, o de uma estabilidade política exterior que permite maior reflexão acerca das questões cotidianas, que não os feitios heróicos na guerra. No modelo socrático-platônico, fomenta-se o autodomínio, uma nova visão do conceito de liberdade que passa a ser também uma liberdade de se desvencilhar dos dogmas e preconceitos tradicionais. Antes, a liberdade, em Homero, era a de não ser submetido a outro povo pela conquista.
O modelo sofista, por sua vez, contempla a necessidade de se vislumbrar a educação de um modo profissional, não ao acaso e formulado com base em premissas, de certa maneira, científicas, de modo sistemático e organizado para que os alunos possam enfrentar o cotidiano na “pólis”. Sua particular preocupação em preparar os alunos para a política, como se vê em Protágoras, foi essencial para que as classes médias pudessem disputar os melhores cargos poíticos com a nobreza aristocrática.
Cada modelo, então, possui características posivitas que podem sem ser condensadas e aplicadas na contemporaneidade. Do modelo homérico, se pode falar da necessidade de os alunos sentirem-se parte de algo que seja maior que eles mesmos, a pátria. A pátria seria algo intrínseco à sua personalidade e também uma coação exterior, que lhe servisse de estímulo para o desenvolvimento da sua cidadania.
Com relação ao modelo socrático-platônico, os alunos teriam a possibilidade de analisar criticamente a realidade em seu redor a partir de um posicionamento interior. Não bastaria, somente servir à pátria, mas servir à pátria diante de um propósito racionalmente justificado, sem que houvesse imposição de ordens absurdas ou mesmo irracionais.
Já do modelo sofista, os alunos teriam a noção de que a educação é uma profissão que deve ser levada adiante para a melhoria das condições de vida geral, principalmente pela via política, já que – no atual contexto histórico – a prova de valor pela guerra não teria tantas vantagens quanto na via política. E para tal deveria haver esmero e preparação dos alunos para ingressar na política ou para participar dela, seja de forma mais direta ou mais passiva, como por meio do voto popular.
Não há divisores de águas extremos entre os modelos apresentados. Portanto, há de se aproveitar o que de melhor cada um deles oferece, para que, desse modelo híbrido, os próprios alunos tenham noção de que nem tudo é rígido ou dogmático, mas há uma evolução histórica que necessita ser compreendida – em termos de modelos educacionais – de modo que os passos seguintes sejam mais embasados, evitando os erros do passado.


VI - BIBLIOGRAFIA

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. A disputa em Homero. In: Cinco prefácios de cinco livros não escritos. 3. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2007.
STONE, I. F. O julgamento de Sócrates. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.



[i] “Tudo quanto é baixo, desprezível e falho de nobreza é suprimido do mundo épico. Já os antigos fizeram notar como Homero eleva àquela esfera até as coisas mais insignificantes.” (JAEGER, 2003, p. 69)

[ii] Xenofonte é outro aluno de Sócrates que retrata os ensinamentos do seu mestre em suas obras.
[iii] Posteriormente, Platão formularia sua teoria do mundo das idéias, o que, infelizmente, não será abordado por não ser objeto direto deste estudo.
[iv] Aritimética, geometria, música e astronomia.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O sono


O calor faz o suor sair lentamente da minha pele, não em gotas, mas como uma fina camada de sereno, que recobre o exterior e me faz sentir ensebado, sujo, indigno e exilado. Fecho as janelas e as vidraças para impedir a entrada do ar fresco da matina. Quero isolar-me do mundo exterior e recolher-me ao meu recanto seguro, sem luz, nem vozes, num vazio aconchegante, para tentar abafar o crescente desespero. Deito-me na cama e puxo o cobertor até metade da cabeça. O aumento da temperatura fustiga o corpo e os líquidos elevam suas temperaturas com maior avidez.

Peço pelo sono, mas ele não me vem anestesiar, nem carregar para fora as máculas deste mundo. Sinto o bafo do demônio logo nas minhas costas, regurgitado pelos sonidos incólumes e indescritíveis que alimentam ainda mais meu medo. Estou paralisado, sem ação alguma, nem vontade de reagir. Fui fustigado pelo desânimo que me levou a alma, deixando-me como um morto-vivo, sem motivo algum para continuar a viver.

O demônio ganha vulto e força pelas maquinações e desproporcionalidades da imaginação. Grito, mas as cordas vocais estão congeladas. Soco-lhe, porém, os braços permanecem imóveis. As pernas, inertes, são inválidas em qualquer esboço de qualquer coisa pensada. Deste holocausto, sou a oferenda, o objeto de sacrifício e a coisa a ser colocada em cima do altar.
Tentei viver e reconciliar-me com o mundo. Só atritos e desavenças pelos corredores da existência que me fizeram perder a crença em algum fim último que pudesse justificar a minha estada neste reles planeta. Como manda o manual, fui bom filho, bom estudante, bom cidadão, mas deu tudo errado, todos os planos, todas as expectativas. Tudo foi esmagado como um pedaço de merda embaixo de uma sola de sapato.

Minha vida não passou de um pouco de resto orgânico digerido, defecado e decalcado no pé de algum filho da puta que nem conheço, que, no entanto, sempre torceu para eu me foder legal. Que prazer imenso deve ter sentido ao me dar uma pisada bem em cima da minha personalidade, dando também aquela típica viradinha com o pé, como se estivesse falando: “Seu bosta, isto é para você aprender a ficar no seu canto.”

Diálogo de um só ou monólogo esquizofrênico? Falar comigo mesmo faz parte da dialética de argumentos ou é delírio de um louco prisioneiro em sua própria carcaça? Uma singular resposta não serve, daí, fomenta outras perguntas, que dão em outras respostas e mais milhares de perguntas.

Um turbilhão de pensamentos forma uma nuvem enegrecida que impede a comunicação entre os neurônios, levando-me à inércia generalizada. Não bebo álcool, nem consumo drogas. A droga sou eu mesmo.

Comunicar é tornar comum, fazer-se inteligível a outrem. Contudo, ninguém compreende o que falo ou escrevo. Sou esfaqueado com prazer sádico por quem menos espero. Amor não existe, nem respeito. É tudo fachada para não nos matarmos como animais que mutilam em caça predatória. Um observatório de hipócritas; canibais famintos pelo sangue alheio.

Bebericar e saborear a fina iguaria vermelha. Sentir apossar-se da força do outro. Vampirismo, porra nenhuma. Matar ou morrer, correr ou morrer, murmurar para morrer. Nada de nada, tudo de tudo, sem forma no formato do gosto do desgosto. Não tem mais nada que falar, esgotou-se o repertório, juntamente com o paladar da vida.

No meu leito, divido o espaço com meus livros. Mudos, eles me respondem as dúvidas em seu ritmo pausado e sonolento, sem extravagâncias. Somos cúmplices no nosso mútuo encarceramento, semelhante às relações entre os vermes e a carne morta. Num esforço quase sobre-humano, tiro minha camiseta. Fico quase desnudo embaixo do cobertor. Se morasse sozinho, ficaria pelado, numa boa. Mas não tenho assim tanta privacidade. Os fios da coberta me acariciam o torso, quase que fazendo cócegas.




Não queria brigar com ninguém, nem causar ódio em ninguém. Só queria fazer as coisas bem feitas, para ajudar as pessoas e, em dado momento, me sentir feliz e produtivo com alguns feitos. Se tenho amigos, ainda não se manifestaram, porque eu sinto seus golpes invisíveis e olhares de ferocidade, embora não lhes tenha feito coisa alguma. Paciência, estas porcarias ocorrem o tempo todo, sem que sequer houvesse manifestação mínima da minha personalidade.

Prefiro ficar no meu canto, como um repolho fedido, em conserva no ácido acético, um picles perfumado e quase podre, esquecido num recanto de prateleira de um boteco de péssima categoria.

As problemáticas nos envolvem como uma bola de neve, encurralando-nos como feras acuadas nas jaulas dos zoológicos maltrapilhos. Não vejo saída, por causa desta condição que não contempla, o mínimo que seja, de uma saída plausível para uma vida normal. Estas palavras, pseudo-inspiradas, saem como cálculos renais, pela uretra, queimando-lhe toda sua extensão devido ao atrito sem lubrificação.

Num estado de maior lucidez, sem as complicações perversas deste estado mental, tudo é mais fácil, inclusive a redação desta porcaria ridícula. Os ensaios bem-humorados são como portas abertas para a vida. Por meio da alegria, a vontade de viver e a esperança queimam a lenha que libera os espíritos, que mostra a verdadeira vida nos aspectos minúsculos do cotidiano.

Viver um grande amor, tal como sonhamos desde sempre é fechar os olhos para as oportunidades. Se nos fixamos muito nele, ele nos foge e nunca o encontraremos, bem debaixo do nosso nariz. O macro é composto de milhares de micros. Os micros compõem o macro. Então, o pequeno e o macro, se vistos da maneira certa, se tornam um só. Uma visão sistêmica, ampliada e sem obscuridades, que congregue o uno e o todo.

Como se vê o tudo, se vê o nada. A escuridão não existe para o cego que aproveita, no cotidiano, a esperança e o vigor da existência neste plano terreno. O alimento para o cérebro não é o mesmo que revigora o corpo e a alma. Mente sana e corpo são, tal como o emblema de conhecida sociedade desportiva.

Se eu amordaço minha dimensão física e me dedico somente ao espiritual, ocorre o desequilíbrio. Caso me dedique somente ao corpo, desligando-me da consciência superior, serei, com certeza, um animal, um morto-vivo. A inteligência, contudo, é tirana se não houver harmonia, com relação aos demais.

Às vezes, a mente comanda o espírito e o corpo. Por outras, o corpo guia a mente e o espírito. Nas demais, o espírito se sobreleva ao espírito e ao corpo. Uma dialética tríplice, cada ponto determinando as demais circunstâncias, em momentos oportunos. Caso um deles sobreponha-se aos demais, instala-se a desordem, e os maus fluídos carregam os poros, dos mais minúsculos aos mais visíveis.

Quando pensamos ser invisíveis somos monstros, cuja capacidade de destruição é indescritível e, no mínimo, abominável. Sentimo-nos assim quando estamos isolados de um mundo que não nos é ensinado e, portanto, esta disparidade entre o que se pensa e o que se vê é o que se chama de loucura.

Desatinos e aforismas brotam da mente desacostumada com o aflorar das realidades até então ocultas. Tudo o que acreditávamos era uma ilusão, porque, detrás desta ordem, existe algo diferente e dinâmico, sem igual, uma malha de comunicação jamais vista, outrora, pelo menos por mim.

Os números de telefone e as redes de internet são manipuláveis, como móveis levados de um lugar a outro, ou plumas de aves, sopradas pelo vento. Tudo, apesar do aparente caos, é completamente controlado, processado e posto em prática. Facções diferentes, discursos diferentes, apenas momentâneos e aparentes. O consenso vigora, debaixo das convenções.

Muitos estão envoltos nesta malha e sabem como articular-se nela. Entretanto, não me foi permitido o aprendizado destas sutilezas, vedando-me o contato com a sociedade. Fui escolhido para dar de cabeça na parede, tal como um bode estraçalha seu oponente, num ritual de pré-cópula selvagem.

Esta dislexia com o meio social é algo que me deixa pasmo e alheio ao que está em meu redor. Esta linguagem, este código esotérico restrito, que nunca me fora ensinado, nunca me fora apresentado, salta à minha realidade como um assassino que ronda sua vítima, dando-lhe somente espaço para perceber os seus últimos minutos de agonia diante do fim inevitável.

Talvez seja uma jornada imposta para testar o valor e as capacidades de adaptar-me a uma realidade, na qual tudo aparenta o mero acaso, apesar de estar tudo previamente planejado, pelo Deus superior, que é a humanidade.

Estas pedradas na alma e os flagelos incorpóreos mostram-me que toda minha educação foi calcada num ideal sem nexo com a vida em si. Aquilo que nomeamos, que falamos, que escrevemos contém uma mensagem oculta, que escondida no tão óbvio, é impossível de ser decifrada.




Desde o nascimento fui exilado deste mundo simples, mas complexo, cuja estrutura ainda não consigo compreender. É uma prisão sem grades, que eu pensava ter sido feita para eu perder. Estes espinhos eram e são, no entanto, sinais para despertar-me para a vida como ela é, sem os formalismos impostos pelo cientificismo. “Estude teologia”, dizem-me os próximos.

De que adianta dizer-me algo, num código que não consigo decifrar? Tudo o que eu acreditava foi destruído como um pedaço de areia que se desfaz com o choque provindo de uma onda furiosa do mar. Mais que um peixe fora da água, sou um molusco imerso em ácido sulfúrico.

As queimaduras são como goles deste mesmo líquido corrosivo adentrando goela abaixo, sem impedimento algum para afastá-lo das minhas entranhas. Meus inimigos eram fantasmas, criados pela minha própria falta de adequação. Era uma paranóia sem sentido, para os inclusos na sociedade, porém, algo totalmente diverso para mim.

A racionalidade técnica me foi colocada como suprema, daí, as negativas com relação às demais coisas. Um questão de ordem cartesiana e positivista fez-me crer mais nos livros que na própria humanidade. Meus livros foram meus amigos a todo momento, domesticando-me e amoldando minha mente, até que não pudesse ver mais nada à frente, afincando uma cerca de medo, com relação aos demais.

Tudo o que eu acreditava ser correto era apenas mera ilusão, coisas que não tinham princípios motores, nem sentido com relação a coisa alguma. Estou cercado de todos os lados e nem sei como pedir ajuda, como assimilar e adaptar-me a tudo. Há uma multidão de furiosos, uma turba revoltada com meus atos impensados.

Fui pego nesta armadilha e não sei como escapar, nem como viver diante de tantos olhares, risos e vocábulos estranhos. Tenho apenas dois meses de sobrevivência nesta selva. O erro não estava nos outros, estava em mim mesmo, e ninguém me alertou a este respeito. Todos tiranos consideram-se vítimas quando são arremessados para baixo do cadafalso do poder.

O ser humano, em si, considera-se correto, mesmo ao cometer atrocidades e incorrer de paixão avassaladora na defesa de uma fé cega, mesmo científica, que lhe veda acesso a altares mais sagrados e elementares da contemplação da vida.

Tenho pouco tempo para continuar e para sobreviver diante desta nova perspectiva que se abre diante do meu mundo. Já fui condenado e nem sei se me cabe recurso, com relação às cláusulas descumpridas por imperícia, negligência ou imprudência. Estou crucificado com o olhar de desprezo das pessoas que nem mesmo conheço e com o sentimento de pesar que causei àqueles que mais amo, por causa da minha beligerante e insensata ignorância.

Em cada ponto, as pessoas se mostram, vêm em fluxos contínuos, como multidões de anônimos que se agrupam à espera de sinais mais ou menos reconhecíveis. Sei, no entanto, que meu fracasso é geral e retumbante, um castelo de areia a ser devassado em época de tormenta, pela minha inadequação em encontrar meios para adequar-me a coisas novas.

Estranho batismo de fogo que corre pelas plantações e ceifa, sem pestanejar, as características que considerava, anteriormente, virtudes. O corpo, carbonizado pelas chamas, ainda insiste em manter-se com todas suas funções, as que não foram danificadas, em reles manutenção.

Conforme Platão, se fôssemos invisíveis, faríamos atrocidades porque nos consideraríamos imunes à ira da coletividade. Nunca estamos invisíveis, nem com falsos nomes, nem com a aparente inviolabilidade do nosso lar, nem com nada. Tudo está perfeitamente vigiado, num sistema de controle, que transcende minha reles inteligência. Não sou e nunca estive invisível, na massa, tal como acreditava.

Aqueles olhares e intenções que me penetravam eram reais mesmo, nada era fruto da imaginação. Loucura nenhum pouco válida, a não ser que fosse uma conspiração contra minha sanidade. Aliás, quem não ficaria louco diante de tanta coincidência?

Apesar de traçar os referenciais, não estou e nunca estive certo, mesmo quando a certeza se apresentava como evidente. Os referenciais são móveis, nunca estáveis, muito menos palatáveis. Eles simplesmente são e se mostram por si mesmos, uma cabal aparição travestida de acaso.
Nunca estive em ascensão. Sempre fui a queda lenta e vagarosa que faz o desejo da morte ser algo muito natural. Odeiem-me, vocês têm toda razão para isto. E quando se cansarem de me odiar, matem-me e vilipendiem-me o cadáver aos quatro ventos. O povo necessita de uma válvula de escape, eu sou o brinquedo, para esta empreitada, mais do que perfeito. Que se faça, então, o plano de execução. Uma vez expulso não há mais retorno, certo? Embora não tenha a qualidade necessária, sou o cordeiro deste sacrifício. Saciem sua fome de vingança. Estou pronto para o meu destino. Enfim, estarei livre, como um pássaro sem asas, que está frio como um cadáver já putrefeito.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Apenas uma presença



O amor é uma presença que vai chegando
Bem devagarinho.
E quando tu menos esperas, doma-te
Bem de mansinho.

No começo é o reconhecimento,
Não há aquele efeito.
Depois, fica louco como uma tempestade
Dentro do teu peito.

Surge a maníaca necessidade de ter-te ao meu lado,
De sentir-te junto ao meu corpo.
Se não me quiseres, basta olhar a tua figura:
Teus cabelos negros até o meio das costas;

Teu sorriso mais lindo do que ouro;
Tuas faces rosadas como a alvorada;
E teus olhos escuros como a noite;
Que sorriem direto para a alma deste jovem ébrio sem rumo.



É difícil de explicar o que sinto.
Tudo parece mais belo.
Não tenho mais fome ou sono, só uma idéia permanente:
Ficar perto de ti.

Nunca fiquei assim por criatura alguma.
Tu me encantaste perdidamente.
És meu querido Mal, aquela que adoro.
Dama dos sentidos, por ti me apavoro.

Não me agüento em pé.
Necessito de um sinal de tua presença.
Nem nos sonhos tu me dás uma única esperança.
Peço-te somente: olha para mim.

Enquanto me ignoras, permaneço aqui calado.
Sou um tolo solitário que vive isolado.
Não há vida, não há nada.
Tudo isso porque tu não me dizes nada.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Fotos, mais fotos. Delírios!

Às vezes, fotografo. Tem vezes que sai coisa boa, tem vezes que não. Como tudo na vida. Creio que as fotos falam por si mesmas. Eis uma amostra.



Se essa rua, se essa rua fosse minha

Ao lado dos troncos.


Totalmente alucinado.


Ruínas em (des) construção.



Brilha, brilha estrelinha.
Crédito das fotos: Roger Moko Yabiku