sábado, 29 de novembro de 2008

Aos estudantes de Direito

O escritor italiano Dante Alighieri, uma vez, escreveu: “Jus est reallis ac proporcionalis hominis ad hominem proportio, quae servanta servat societatem, corrupta, corrumpit.” Ou seja: “Direito é uma proporção real e pessoal de homem para homem, que conservada conserva a sociedade, corrompida, corrompe-a.”
Pois bem. Estamos a todo momento diante de uma encruzilhada, na qual escolhemos caminhos. Nós escolhemos passar cinco anos nos bancos de uma faculdade para melhorarmos de vida. Não resta dúvida disso. Mas creio que isso não é um fim por si mesmo. Por que escolhemos estudar Direito? Porque, de certa forma, somos inconformados com a injustiça que permeia nossa realidade. Quem de nós nunca sofreu uma injustiça? Creio que todos nós, neste salão, já nos sentimos violados uma vez ou outra. Acredito também que optamos estudar Direito porque desejamos transformar essa realidade, pois não concordamos com a perversidade do sistema que faz com que poucos tenham muito e muitos tenham quase nada. Todos nós já engolimos sapos. E vamos engolir muito mais sapos ainda. Por que isso ocorre?
A Constituição pode validar todo o ordenamento jurídico, mas enquanto seus princípios, objetivos e fundamentos permanecerem só no papel – como requisitos meramente formais de um regime democrático – sem quaisquer indícios de transformação ou contenção da desigualdade social, podemos falar somente de legalidade, em termos de Direito, mas não de justiça.
O símbolo da justiça é uma senhora vendada, com uma balança diante de si. Isso simboliza a imparcialidade que deve guiar a justiça. Porém, nós não devemos nos portar como cegos diante do que vemos e do que sentimos. Se fecharmos os olhos para o que a realidade nos apresenta, não estaremos nos valendo da imparcialidade. Estaremos sendo covardes, pois seremos omissos com relação a causas maiores que dizem respeito a toda humanidade.
Aprendemos também que o Direito é uma técnica de controle social. E a técnica na era da razão instrumental, que trata a tudo e a todos como meios para atingir seus objetivos, não leva em consideração necessariamente a ética. Portanto, senhoras e senhores, o Direito não deve ser utilizado somente como uma técnica insensível aos clamores populares e à realidade material. Se assim o for, o Direito que deveria nos proteger nos fustigará com um grau de violência tão sofisticada, que a apatia que aprisiona nossos corações nos congelará por completo. E seremos nada mais do que peões a serviço de um sistema perverso que se perpetua com o uso do Direito para a manutenção do “status quo” e da ordem social tal como ela se apresenta, pela proteção exacerbada da propriedade privada.
É injusto dizer a outro homem (nascido na pobreza, que não teve acesso a um bom sistema educacional, a um sistema de saúde de qualidade, a oportunidades de empregos melhores remunerados, que recebe rendimentos praticamente suficientes somente para a sua subsistência e dos seus familiares) que siga estritamente os trâmites legais, porque não estaríamos dialogando como seres livres e iguais. Estaríamos fomentando uma injustiça. Não fazemos apologia de uma revolução ou de uma desobediência aos institutos de Direito, que isto fique bem claro. Apenas contextualizamos que, antes de tudo, o homem precisa sobreviver fisicamente, não passar necessidades e se desenvolver intelectual e moralmente para não ser escravo das contingências. Os milhares de cidadãos carentes têm assegurados constitucionalmente suas liberdades e direitos básicos, mas não há condições do seu exercício efetivo. De que adianta?
Somente poderemos falar de justiça quando nenhum homem continuar escravo das necessidades sociais e econômicas, alheias à sua vontade, que violam a dignidade intrínseca do seu ser. Quando todos tiverem um mínimo social que lhes permita o exercício efetivo dos seus direitos e liberdades básicas, amparados por um conjunto de instituições justas in concreto, poderemos dialogar e deliberar como seres livres e iguais, com o mesmo peso nas mesas de negociações políticas. Por enquanto, numa sociedade como a brasileira, a justiça é tida como uma ordem que serve para manter uma certa estrutura social, que segura os pedaços da sociedade, para que o todo não desmorone, em vez de se repensar e se implementar um novo esquema institucional que resolva os problemas em suas raízes. A justiça é algo muito mais do que isso, como pudemos comprovar.
Então, senhoras e senhores. Aqui da Tribuna, vejo suas cicatrizes interiores e exteriores, assim como as minhas, nos seus rostos castigados pelas saraivadas do tempo e pelas emboscadas da vida. Mesmo assim, continuamos a vagar, apesar de sabermos que boa parte dos nossos não será realizada. A maturidade nos faz ter uma noção mais verossímil da realidade, de tal maneira que deixamos para trás nossa ansiedade juvenil de querer abraçar o mundo.
Estamos vivos, no meio do turbilhão de vozes discordantes, e imersos no estado de natureza, paulatinamente domesticados pelo que chamamos de civilização ordenada pelo Direito. Nossa natureza é selvagem, instintiva e, por vezes, cruel. Sem os cerceamentos da moral, somos indolentes como bestas insaciáveis. A ética só passa a existir quando entra em cena o outro e o respeito que adquirimos pelo semelhante – via cultura e educação, transmitidas pelas formas simbólicas da linguagem.
As nuances de uma infinita luta – entre corpo e alma, matéria e sublime, amargo e doce, entre os fragmentos da essência e da existência – influenciam nossas decisões. Nesta dissonância, ponderamos sobre como vamos acertar nossas vidas, ao longo das contradições. Mas nem sempre fazemos aquilo que é mais adequado. Este é o preço do nosso livre-arbítrio: a incerteza e a responsabilidade da escolha.
Quando tomamos um caminho indesejado, sem que haja recursos para anular a partilha, temos que aprender a ser felizes assim mesmo, pois o retorno é muito mais doloroso. Um contínuo crescente das conseqüências dos nossos atos nos faz ter a sensação de que tudo se repete, como um eterno retorno. Estaremos presos, ou apenas agoniados com o retumbar daquilo que nos desagrada?
Quantas vezes pisamos nas nossas convicções pela força coercitiva da coletividade, personificada na opinião pública ou no Estado, e pelo medo do que pensariam de nós? Se nos sentimos traídos pelas instituições e pelos representantes que deveriam nos proteger é porque, no fundo e em certo ponto, traímos a nós mesmos e nos tornamos escravos do comodismo do nosso fanatismo ou do fanatismo do nosso comodismo.
As instituições hão de ser remodeladas, ou reconstruídas, para que voltem a servir novamente a humanidade, em vez de serem de camisas de força empregadas pelos partidos políticos para aprisionar os que não têm noção do seu poder. Por estes motivos, o poder que emanou do povo deve retornar ao povo, sem porta-vozes ou intermediários, para que o Direito recupere sua dimensão democrática de fato e não meramente formal.
Se todos nós tivermos um mínimo de noção de que nossos atos conjuntos podem transformar o mundo, as coisas seriam muito diferentes e os falatórios evasivos perderiam sua força. Sem as ditaduras – do discurso, da burguesia ou do proletariado -, a dialética seguiria seu fluxo contínuo, pois tudo evolui e nada é estático: chega de fronteiras retóricas vangloriando um ou outro grupo.
Esforços reunidos em torno de um acordo geral de vontades nos garantirão meios para que tenhamos uma estrutura básica, incluindo no seu bojo instituições justas, com igualdade de oportunidades para todos. O filho do lixeiro e o filho do presidente da República terão acesso igual a um sistema educacional eficiente e a uma série de bens básicos, que lhes permitirão escolher um plano racional de vida.
Cada qual escolherá a carreira mais adequada, conforme sua vontade e não por imposição da necessidade, porque a sociedade e suas instituições serão pautadas pela justiça. Ninguém – os imbecis coletivos, as elites ou os discordantes – usará as outras pessoas como meios para seus objetivos de conquista do poder, pois as pessoas serão reconhecidas, em princípios estruturais, como fins nelas mesmas e, portanto, suas autonomias serão respeitadas desde o nascimento até a sua morte.
A mentira e a manipulação da opinião pública serão banidas por serem assassinas da inviolabilidade da dignidade intrínseca de cada ser humano, que é estruturada nas liberdades de consciência e de pensamento; não haverá mais lugar para alienação – de direita ou esquerda – nesta sociedade bem organizada. Por isso, senhoras e senhores, quando sairmos por aquela porta, devemos ter em mente que nosso aprendizado e nossa missão não se completaram nestes cinco anos de academia. Caso contrário, meus amigos, todos esse conhecimento adquirido terá sido em vão. Portanto, esta missão de buscar e implementar uma sociedade mais justa e igualitária continuará por todos os dias das nossas vidas. Quando este dia chegar, em que o Direito coincidir em definição e práticas com a Justiça, seremos todos livres. E isso não será somente mais um discurso.