sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Araucaria angustilofolia

Quando o asfalto da rodovia atinge o Estado do Paraná e o clima ganha um gosto temperado parecido com o da Europa, começam a surgir algumas árvores de uma espécie típica daquela região. São conhecidas popularmente como pinheiros de araucária. Nome científico: Araucaria angustilofolia. Parecem chapéus de folículos espinhosos. São sui generis, não existem por incidência natural em qualquer outro lugar do planeta. Um frio cortante atravessa os orifícios da blusa de lã e me acaricia como se fosse a lâmina de uma navalha afiada que percorre a superfície do músculo peitoral num ensaio anatômico que antecede a brutalidade que viola a integridade física. A mesmice dos quilômetros transforma-se em ansiedade, eliminando o entusiasmo da jornada que se iniciou às 14 horas. Percorri mais da metade do caminho, sem ninguém para me atormentar com perguntas cretinas e óbvias com a função fática de manter-me acordado. Tédio. Penso em desistir. Lembro-me de quem sou e do que devo fazer enquanto o carro segue pelas estradas engolidas pelo escuro, num compasso mecânico.
Convencionei parar num posto de gasolina, a cada dois mil quilômetros, para urinar. Meço de cabo a rabo os tipos locais. Não é algum tipo de perversão de conotação sexual, apenas força do hábito. Um trapo em tom de vermelho fosco, que traz reminiscências de um vestido, é a única peça que cobre a figura caquética de um ser feminino. Ao mesmo tempo em que acondiciona a xícara de café, a mulher junta as mãos em forma de cuia tal qual um instrumento de captação de energia para sua carcaça. Seus olhos de azul desbotado, o preto que fica branco quando chega perto das raízes e a flacidez de seu rosto, disfarçada por toneladas de maquiagem de terceira linha, denunciam o peso de sua idade. Sorve o líquido provocando um ruído irritante de sucção e deixa sua marca venérea de cor lilás na borda da xícara.
A mulher tem vergonha de mostrar a boca. É banguela. Deixa uma moeda no balcão e, como entrou, deixa o estabelecimento: calada. O balconista vira a aba do boné para trás e me explica, apesar de eu não ter perguntado coisa alguma: - É mais uma puta velha que ninguém mais tem coragem de pagar para comer.
Ouço, mas não respondo. Termino a minha xícara de café e volto para a estrada. Algum tempo depois, a rodovia ganha cores mais fortes. Os postes de luzes amareladas começam a aparecer, seguidos dos seus comparsas de luzes fluorescentes. No momento em que já não agüentava mais chego ao meu destino, Curitiba. Diante do desconhecido, surge a curiosidade aguçada pela minha melhor propriedade naquela ocasião, o anonimato. “Araucaria angustilofolia”, murmuro tentando não pensar em nada.
Chego ao hotel, um quatro estrelas, bem no centro da cidade. Freio. O atendente confirma a reserva e me entrega a chave do apartamento. Um rapaz pega bagagem e toma a frente, ensinando-me o caminho. Nestas circunstâncias, sou anônimo, sem conhecidos. Posso ser quem quiser com as chances de ninguém saber quem realmente sou. A mente pede por um entretenimento. Luxúria regada a álcool é uma boa opção. Pergunto, já no elevador, onde fica uma casa de espetáculos adultos. Ele pondera e diz que vai perguntar a um outro companheiro, mais familiarizado com esse aspecto do turismo.
- La Vita. - revela-me o outro, quando desço à recepção, na saída de encontro ao espectro clandestino da noite. - Qualquer coisa, o senhor volta e me pergunta, que eu conto quais são as outras casas do tipo, fico aqui até as 23 horas.
Garoto atencioso, até me prepara um mapa e me ensina o caminho. Em tempos passados, diria que foi uma cordialidade corporativista a um companheiro de gênero que procura diversão vulgar. Todavia, toda sua atenção visa uma boa e gorda gorjeta. Deixo umas moedas em sua mão e é tudo. Se falar ou pensar besteira apago ele aqui mesmo. Dirijo até o centro de espetáculos perto dali. Estacionamento horizontal e piso límpido.
Entro no elevador e ensaio passos mortos abafados pela música afro-baiana que estimula os corpos se sacudirem a cintura num ato quase inconsciente de tentar manter a temperatura que vagarosamente lhes foge pelas frestas do teto. Teto ao ar livre por motivos estéticos, genial. Passo frio por causa dos arquitetos. Filhos da puta.
Os passos se desperdiçam naquele local, enquanto imagino o que terei para jantar. Ando por todo o piso e entro num restaurante de comida chinesa, tipo self-service. Sashimi de salmão, wasabi e shoyu. Yakisoba, carne com legumes, frango xadrez e camarão ao molho especial. Bolinho de camarão e dois rolinhos primavera regados com molho agridoce. Chope escuro.
Deixo os talheres ocidentais metálicos, manifestando minha preferência aos dois pauzinhos. Eles são malfeitos, têm farpas. Foda-se, não sou uma princesinha. Ingiro um naco de carne, que desliza suave pelo esôfago. O garçom me entrega a bebida. Pela janela transparente, vejo dois chineses preparando a comida. Transparência, em todos os sentidos. Sem sacanagens na cozinha. A mulher, que não sabe pronunciar os “erres” direito, pesa a quantidade de comida nos pratos. Comida por quilo. O primeiro gole do chope leva um quarto do conteúdo do copo. Fecho os olhos e sinto o líquido gelado e levemente amargo correr pelo tubo digestivo. A comida entra aos poucos, satisfazendo-me. Pago a conta e vou ao banheiro despejar alguns fluidos em excesso. O frio só é uma bosta por causa disso.

Araucaria angustilofolia é aquela moça bailando pelo salão barulhento.
É a imagem daquela menina que usa a solidão como armadilha.
Com a solidez de uma árvore pré-histórica e genuína, ampara minhas
Mãos e sorri forçosamente ao primeiro contato, numa tentativa de forjar
Um programa que pode não sair muito barato.

Rodas no asfalto úmido e gelado. Silêncio, o toca-fitas está desligado. Mãos no volante rumo ao estabelecimento indicado pelo rapaz do hotel. Não é difícil de encontrar. Estaciono. Ando pelo estacionamento e esbarro com um brutamontes na entrada. É o porteiro, que me dá um boleto de consumação. No puteiro de luxo, velhos e executivos com copos de uísque importado. Putas, com trajes bem recortados, fazem o tipo: “Sou garota universitária.” Quero outra mijada. Vou ao banheiro e dou de cara com a porta. Ocupado. Uma senhora, com pinta de proprietária da casa, fala:
- Aí sempre tem fila, não tem jeito. Tem um outro lá em cima.
Espero. Urino, levanto o zíper, lavo as mãos e as enxugo nas calças. Essa merda de banheiro não tem toalha. Saio. Quero algo mais autêntico, onde as coisas e as relações sejam mais explícitas. Pergunto ao porteiro. Tem um, sim. E é bem no centro, pertinho do hotel em que estou hospedado.
Pé no acelerador, que também castiga os pedais da embreagem e do freio. Numa cidade desconhecida, a possibilidade de se perder é óbvia, em todos os sentidos. Na esquina, um bando de taxistas em seus carros cor de laranja, cada qual com um número de telefone estampado na porta. - Onde fica a Metrô ? - É só pegar a terceira rua à direita e depois virar à primeira direita. Então, espera chegar a um outro ponto de taxi, entra à direita e o senhor vai enxergar os letreiros do lugar. - Obrigado.
Encontro uma vaga entre dois carros, como se estivesse à espera. Alguns passos na boate e sou recepcionado por um garçom que me guia uma mesa, postado à frente do palco quadrado, um jazigo no centro geométrico do estabelecimento, um tipo de jaula, sem grades, um pouco acima do nível do chão. A mesa é circular, de madeira carcomida e desgastada pela erosão dos toques sujos e mundanos dos que já passaram por ali. O relógio indica 22h30. Já passou a hora de criança dormir. Começam as atividades ocultas, longe da luz solar e da falsidade dos restaurantes grã-finos da metrópole.
O garçom, de volta com um cardápio na mão, pergunta-me o que desejo beber. Uísque. O preço é salgado. Opto pela tequila, mais barata e eficaz aos meus propósitos. Olho os corpos que desfilam no palco iluminado de chão negro e erodido pelos sapatos das mulheres que espalham seu perfume, tentando usar a arma biológica mais perfeita que existe para atrair um macho ignorante, como sempre. Postam-se à frente das mesas e exibem seus órgãos baixos, ainda que dentro das poucas roupas. Barangas.
A casa está com pouca freguesia. Uma ou outra mais ousada senta-se num banquinho ao lado do seu pretendente. Predominam os homens com mais de 25 anos, com situação financeira definida, conforme indicam os trajes e os rótulos das embalagens de bebidas em cima de suas mesas. À minha frente, rapagotes entre 18 e 20 anos derramam cerveja garganta abaixo e assistem, simultaneamente, o princípio do show. Passados 15 minutos, uma delas chega. Agacha-se e dá-me um abraço por trás. Puxa aquele simulacro de banquinho - um objeto cilíndrico, acolchoado nos locais que acomodam as costas e as nádegas - e se acondiciona logisticamente, sem desgrudar os braços no entorno do meu corpo, sem desperdícios. Sinto seus seios muchos nas minhas costas.
O toque é suave, porém mecânico. Seus dedos frios enrolam-se nos meus e as mãos ficam atadas, num laço tenso e receoso. Ela puxa conversa e conta que seu nome é Cátia, sem especificar se é com “cê” ou com “ká”. Veste uma calça jeans e um treco com alças brancas. Não sei o nome de roupas, muito menos das feminas. Está um pouco rouca. - É de tanto gritar e torcer pelo Brasil. - justifica. Pode até ser verdade. Não ligo e, na verdade, nem quero saber.
- Qual é o seu nome ?
- Roberto. - minto.
Olha minhas unhas. As da mão esquerda são compridas. E as da direita, curtas. Uma exploração táctil e uma declaração: - Que unhas, hein ? - Toco guitarra nas horas vagas. Cátia dá um sorrisinho, meio amarelo. Uma prostituta drogada, para variar.
- Fui casada com um japonês. Larguei dele, há um mês. Peguei-o na cama com outra. Nem sempre fiz isso, sabe. Estou nessa vida uns três meses. Meu marido me batia muito, mas dessa vez fui eu quem sentei o cacete nele. Desgraçado. - Gargalhadas.
- Por que você não deu queixa na polícia ?
- Pensei nisso. Não éramos casados no papel. Vivíamos juntos. Ele tinha vergonha de mim. A família dele não gostava de mim porque eu era da noite. Mas a família dele era complicada. Um irmão dele foi pego fazendo coisas com uma sobrinha. Ele se escondeu dentro do guarda-roupas.
Mentira, eu sei. Gente como ela tem costume de mentir ou inventar estórias, encenadas num mundo alternativo - um jeito de camuflar a realidade não quista, da qual nem sempre se consegue escapar. Acho que a sobrinha devia ser ela, que se deixou levar por um tio filho da puta. Seus dedos se movimentam na palma das minhas mãos, numa tentativa desesperada de arrebatar-me para o ninho de negócios. Sou homem e macho, mas não sinto coisa alguma. Coitada, está perdendo tempo.

Araucaria angustilofolia é ela quando eu a encanto com papo-furado,
Aquele mesmo com que muitas meninas - ditas como decentes - me acusam de otário. As palavras vêm com sinceridade e um pouco de ingenuidade.
Mas quem diria que aquelas sereias de sentimentos calejados ainda têm
Um pouco de sensibilidade?

Cátia me revela sua idade: 26 anos. Parece mais nova. Ela fica contente. Invento que tenho 24 anos. Diz que é de uma cidadezinha muito pequena, no litoral do Paraná, cujo nome não é guardado com exatidão. Se for Antonina, é verdade. Anápolis ? Erra feio. Esse município fica no interior de Goiás. Cátia diz que já esteve em São Paulo, na cidade de Bastos, durante algumas festinhas infantis para adultos.
- Nojentos, esses homens de meia-idade que saem com meninas de 12 ou 13 anos. - digo.
- Homens velhos gostam de meninas novas. Meninas novas gostam de homens mais velhos. Gosto de garotões, de 16 a 20 anos.
- Com menores de 18 anos você pode ser presa.
Cátia ri e me dá o primeiro beijo. Empatia ou esforço de levar-me para baixo dos lençóis. O toque de nossos lábios é seco. Não há carga emocional alguma.
- Você é quem tem que tomar cuidado para não ser preso.
- Não faço coisas desse tipo.
Ela me abraça. As apresentações continuam. Perco a conta do número de garotas que descascam suas vestes para a platéia. Cátia continua a me envolver. Não me surte efeito. Desgrudo uma das mãos, pego meu copo de bebida e levo-o aos meus lábios, acariciando o sal em sua borda. A bebida desce, seguida pelo sumo do limão que acabo de morder. O garçom vem à mesa e peço-lhe outra dose de tequila.
- Às vezes me faço de boba. Sei chegar e sei sair.
- Parabéns. E emprego, é fácil de arranjar por aqui?
- Se estivesse, eu não estaria aqui, né.
Silêncio. Fico sem graça e ela começa a colocar a língua no meu ouvido direito. Estou bem vestido. Acha que sou rico. Vaca.
- Seu corpo está quente. Vamos dar uma saída? - insinua.
- Não dá. Tenho que acordar cedo. Se atrasar, me fodo todo.
Cátia massageia meus ombros duros. Pensa que estou tenso. É o meu estado natural. Tiro a caneta do bolso da camisa, rasgo um pedaço de guardanapo e peço-lhe para anotar o seu telefone para que chamá-la na próxima vez em que estiver na cidade. Ela o faz. Em seguida, lembro-me do cartão do hotel, de material mais durável, e peço-lhe que escreva então nele. Obedece e ordena-me a rasgar o guardanapo com seu manuscrito. É a minha vez de obedecer.
Outra garota entra no palco para o show de strip-tease. É o quarto da noite. Conheço a música. Love Hurts, do grupo escocês Nazareth. Cátia conhece a canção e já fala o nome do conjunto. Ofereço-lhe uma bala por causa de sua garganta irritada. Ela aceita e me pergunta se está com mau-hálito. Não está. Cátia aceita e me diz obrigado. A moça que dança no palco tem pele negra. Desfila suas carnes magras em cima do palco. Performance demorada, sem tipo algum de ensaio. O fundo musical é apenas motivo de fundo para ficar inteiramente nua aos berros dos bêbados que se esquecem dos empecilhos da civilização e assumem seus instintos mais primais. Magrela, sem tetas e sem bunda. Não gosto. Parece uma tábua de passar roupas.
- Estão repetindo a música.
- É que ela não terminou de tirar a roupa. - esclarece-me Cátia, que reforça seu abraço em meu corpo.
- Você está quente.
- Nem tanto, impressão sua.
Ficamos juntos por mais alguns instantes. Ninguém vive de companhia. A moça sai em busca de um cliente e me abandona na mesa. Não sinto rejeição. Tais relações são meramente comerciais. Adeus, mocréia. Pausa nas apresentações de strip-tease. Tipos peculiares parecem ter sido escarrados nas mesas. Ao meu lado direito, um bando de garotos de periferia em seus jeans desbotados. Mais para frente, na lateral direta do palco, um casal de libertinos. A loira, excitada com as meninas, esquece de tirar o crachá de identificação da empresa em que trabalha. Seu marido fica quietinho na mesa, bebendo cerveja. Ela as acaricia e guarda algumas notas de R$ 10,00 nos trajes sumários delas. Só falta lambê-las. Em outras ocasiões, ficaria com muito tesão. Não estou com o humor necessário para isso. Pervertida.
- Garçom, outra tequila.
Pagode é o ritmo que marca os cortejos remunerados. Uma outra moça passa por detrás de minha banqueta e pede-me para tomar conta de sua cigarreira - um artefato de plástico envolto de metal. Sou abordado pela segunda vez. Mais outra que pensa que sou rico. Desgraçada.
Ela sobe no palco e dança. A discoteca é variada. Tem até a música do tricampeonato brasileiro. “80 milhões em ação, prá frente Brasil, do meu coração !” A desconhecida dança com uma colega. Rock ‘n’ roll clássico. Um gole largo para a música. Elvis Presley canta Rock Around The Clock. Um rapaz, mais novo que eu, sobe ao palco e a toma para dançar. Tequila. Dança muito bem e sabe o que faz. Veste um traje tipicamente country, adornado com um colete preto e um laço branco no pescoço. Muito bonita, podia ser disputada a tapas. Olhos claros, pele morena bem clara e cabelos castanhos encaracolados até os ombros, com corpo bem torneado e rígido dentro de suas vestimentas, não tão vulgares assim. São bregas.
A moça dispensa o moleque da dança e vem para minha mesa. Alguns passos. Nervosismo. Pede para se sentar. Levanto-me do banco à esquerda e sento-me no da direita. Senta-se onde eu estava.
- Muito prazer, meu nome é Malú. - e me dá um aperto de mão.
- Roberto. - insisto no pseudônimo de ocasião.
Malú pede permissão para pedir uma bebida. Como a maioria das meninas que circula pela casa, a escolha é um Keep Cooler. Pede o de cor vermelha, sabor pêssego. Deve ter um gosto de bosta. O garçom deixa o pedido na mesa. Com voz firme, ela me agradece. É a primeira vez na noite que alguém me agradece.

Araucaria angustilofolia são os nomes inventados, por uma questão estratégica de esconder uma outra privacidade, muito além dos afagos e do
Contato dos orifícios e dos órgãos baixos. Nome verdadeiro, elas não dizem não. Embora nomes próprios, são genéricos, com um toque misto de égua e tesão.

- Deu para perceber que você era um cara simpático.
- Simpático? Tenho cara de demônio.
- Nada disso.
- Gentileza sua.
- Por quê?
- Geralmente, sou muito grosso.
- Algumas vezes temos que ser. - confirma Malú.
Os improvisos de strip prosseguem e Malú continua tensa. O silêncio intercala os diálogos. Suas mãos finalizadas em unhas de esmalte vermelho metálico repousam em cima das minhas na tentativa de encontrar um pouco de segurança. Seu corpo está mais próximo ao meu. Suas mãos, suadas. O som está em alto volume. Encosto minha boca em seu ouvido direito, esbarrando meus lábios em seus cabelos, quase berrando para que me ouça. Ela gosta do meu jeito e da minha conversa, eu acho. Homem é uma besta. Pelo menos não segura nas minhas bolas pensando em dinheiro, por enquanto.
Mais garotas entram no palco, uma após a outra. O ápice das gritarias é quando duas delas, uma loira e outra morena, são anunciadas pelo locutor. Com roupas de cowboy, ao som caipira norte-americano, são recepcionadas aos gritos. A primeira, a de cabelos negros e compridos, aproveita todo o espaço destinado a sua performance e percorre as mesas, subindo nas cadeiras, permitindo os toques de mãos iradas e desconhecidas. Não fica inteiramente nua. A música pára e sua colega, a loira, entra. O espetáculo prossegue com a dupla das peladas. Numa mesa lateral esquerda, quatro homens entre 25 e 30 anos se divertem de maneira pouco usual. A morena chega perto de sua mesa e dobra as pernas. Eles despejam o líquido de uma garrafa de cerveja entre suas pernas. Apesar do frio, ela demonstra satisfação. Fingimento certo. Olho para o meu copo vazio. Ao meu gesto, o garçom me traz outra dose. Gritos e histeria.
A loira está quase nua. O casal de libertinos prega a atenção nela. A mulher chama-a ao lado e a segura pela cintura. As duas dançam animadamente naquele canto, sem perder o compasso da música. Seu companheiro apenas observa. A loira tem uma tatuagem na nádega esquerda, próxima ao orifício anal. Não consigo identificar com nitidez o formato por causa da escuridão do ambiente em contraste com as luzes pregadas no teto. Ambas continuam com os chapéus na cabeça. Os urros continuam. A morena chega perto de minha mesa e sobe numa cadeira. Inclina-se e movimenta suas nádegas bem na frente da minha cara. Sinto o cheiro de boceta melada.
Malú parece sedada. Suas vestes brancas e justas salientam os dotes de seu corpo. Seu rosto é perfeito e sua boca, carnuda. Procura algum tipo de proteção. Tem medo. Dá para notar pela expressão de suas faces.

Araucaria angustilofolia, elas ocultam seus nomes de batismo, porque no fundo mesmo, ninguém quer saber o nome de ninguém. Ir à zona é a
Chance que alguns peludos encontram de escarrar suas frustrações da
Vida cotidiana, inferiorizando um ser humano, com tratamento quase
Animal de uma figura sempre sagrada de mulher.

- Está toda de branco. É para simbolizar a paz?
- Gosto muito desta cor e das roupas tipo country.
- Seus olhos verdes são muito bonitos. É descendente de alemães?
- De alemães e poloneses. Quer dizer, de alemães e holandeses. São azuis-esverdeados.
- O quê? - Ela mente.
- Os meus olhos. Não são verdes. São azuis-esverdeados.
- Não enxergo direito com essa luz. Mas são muito bonitos.
- Para uma “moça de família” acho que está bom. - ironiza sua própria condição, numa risadinha fingida e triste.
Malú diz que morou cinco anos no Paraguai. Foi para Asunción, a capital, quando tinha 20 anos. Não conta muito o que fazia por lá, apenas que conseguiu o seu primeiro diploma por aquelas bandas. Fala de um namorado italiano. De tanto ouvi-lo conversar com seus amigos, acabou aprendendo sozinha o idioma. Quanto ao inglês, diz que está fazendo um curso básico. Mais abobrinha. Malú sorri pela primeira vez na noite. Nosso diálogo se abre um pouco e sai do automático. O assunto é música. Sua boca se move sempre que um novo som rola. Fico espantado com a quantidade de músicas que ela acompanha, de cor e salteado. Malú diz que é de tanto freqüentar o lugar.
Conta que seu pai foi músico. Tentou ensinar-lhe os primeiros acordes, mas não quis saber. Acabou a tequila. Seguro o copo e olho o fundo. Refração maldita da luz de cabaré na lente asquerosa de um copo profano. Chega de bebida por esta noite.
- Se ouvisse o que ele falava, não estaria aqui hoje. Já me convidaram para fazer segunda voz numa banda que hoje toca axé no Japão. Desisti. Não gosto muito de axé. Mas o que faço mesmo são dublagens. Tudo bem com você?
- Estou cansado.
- Tive te observando antes. Gostei de você. Quietinho... não chegou junto de ninguém.
- E você, tudo bem?
- Já disse que sim. É que eu estava ali no fundo, numa mesa. Um cara veio passando as mãos nos meus seios. Mandei parar. Não gostei daquilo. Tem coisas que a gente faz dentro do quarto mas não faz num bar, com todo mundo olhando. Assim como você veio aqui e não é obrigado a sair com ninguém, se não quiser...
- Certo.
Na mesma mesa dos babacas embriagados, uma loira de cabelos lisos e curtos é o objeto de delírio. Um balde de gelo, utilizado originalmente para acondicionar uma garrafa de champanhe, jaz em cima da mesa. Um deles pega uma pedra de água solidificada e a joga calça adentro da moça. Está muito frio, mas ela agüenta o fio gelado que escorre em seu órgão reprodutor, molhando suas calças marrom desbotadas. Pega outra pedra de gelo e a chupa, passando eventualmente nos seios. Senta de frente no colo de um rapaz. O outro chega por trás. Ao som de um samba, simulam uma dupla penetração na frente de todos. Mais um chega pela frente e faz com que ela abaixe sua cabeça até a sua genitália. Agora são três homens e uma moça, todos com roupas, sem vergonha de passar vergonha, num lugar esquecido pela lei inventada pelos burocratas e por Deus. Brinquedinho. Naquele local tudo é permitido. Patéticos.
Um bando de gringos altos, de olhos e cabelos claros, levemente grisalhos, entra na casa. Ela me abraça com mais força. Quase 1 hora. Dou-me conta do horário e do compromisso que tenho logo pela madrugada.
- Os franceses chegaram.
- Franceses, quem?
- Aqueles ali, bem em frente. Não gosto daquele de óculos.
O ódio resguardado de Malú pelos franceses brilha em seus olhos azulados e distantes. Não perdem por esperar, desgraçados. Sua vingança vem com a vitória da seleção canarinho na Copa do Mundo, contra os anfitriões franceses, interioriza. Vestir a alma de torcedora é, também, a única forma para ela ser cidadã. Garotas de programa não são reconhecidas, oficialmente, no estratagema moral da sociedade mundial. Pelo menos na massa da torcida, Malú está junto do resto do Brasil, sem distinção, com coração uno, sem pensar muito nos carnês vencidos, esquecendo-se dos clientes com desejos doentios - respeitáveis durante o dia, mas porcos e sádicos com desconhecidas com que ninguém se importa.
- Você é casado? Tem uma namorada?
- Sou solteiríssimo e não tenho namorada.
- Simpático desse jeito e bonitinho assim...
- Coisas da vida.
Tenho que ir embora. Despeço-me pela primeira vez. Curvo-me levemente e levanto sua mão esquerda para beijá-la. Fica tocada com o gesto e me dá um beijo no rosto. O garçom diz que vai trazer a conta até a mesa.
Ele volta e diz que tenho que me dirigir à portaria para acertar a conta. Levanto-me do banquinho. Malú me dá um olhar molhado e dirige seus lábios ao canto esquerdo do meu rosto. Seu beijo deixa uma marca de batom. Ela insiste em limpar o vestígio, pensa que sou casado ou alguma coisa do tipo, não sei o motivo.
- Quando você volta para cá?
- Quando puder. Talvez num feriado prolongado em que não esteja a serviço. Onde posso te encontrar? Aqui mesmo?
- É.
Malú se despede com o silêncio e se retira da mesa, logo depois de mim. Até que é decente para uma puta. O garçom pensa que vou dar o calote. Pago em dinheiro. Tenho vontade de esfregar as notas na bunda dele até arrancar sangue. Ele me entrega o “convite” da casa. Seu nome é Fon Fon, apelido esquisito para um homem. Deve ser uma bichola. A noite é polar. No meu quarto, tiro minhas roupas e deito na cama para sentir o contato da pele com o cobertor macio. Adormeço, pensando nas duas moças que conheci. Tudo gira. Efeito tequila. Pau no cu da crise do México.
São 3 horas. Aos pulos, vou para baixo do chuveiro. Não quero chegar atrasado. Água fria. Merda. Arrumo minha maleta e saio do quarto. Ainda é escuro quando dou baixa no hotel.
O executivo é pontual. Europeu típico, no físico e nos costumes, sua face é rígida. Os olhos claros são distantes assim como seus passos, que parecem esmagar o solo ao menor contato. Preparo-me para recebê-lo. Suor na testa. Lenço na pele. Não devia ter dormido tão tarde. É hora de sua corrida matinal, antes do início do expediente. Rotina. Ninguém dá mais bola. Espero que me receba.
Esteja sempre bem-vestido, recomenda o figurino. Meu terno preto se camufla com a aurora boreal que anuncia o despertar do dia. O silêncio só é interrompido pelos pássaros vira-latas que rondam os arredores da montadora, em meio a uma mata reflorestada com eucaliptos. Nosso encontro está próximo, numa fração de minutos.
A negociação deve sair perfeita, sem falhas, ou estou fodido. O brasileiro é
hospitaleiro por natureza. Ainda mais quando é subornado. Por isso, o industrial conseguiu terreno, financiamento, obras de infra-estrutura e isenção fiscal. Negociador hábil, tem deputados, senadores, vereadores e prefeitos em seu círculo de influência. Cabem todos em seu bolso, como marionetes. Caminha lentamente. Gosta de olhar tudo, antes mesmo de todo mundo chegar. Ele tem confiança demais em si mesmo. Cantarola algo em alemão. Coral da Cantata 147, de Johann Sebastian Bach, “Jesus, A alegria dos homens”, reconheço. Fico mais nervoso.
Ego acentuado e aparente invulnerabilidade. Você perdeu, desgraçado. Por trás, meus braços são fios de aço ao redor do pescoço da minha mercadoria. A música pára abruptamente, interrompida pela obstrução da passagem de ar pela traquéia. Tenta reagir. É obvio, como faria qualquer ser vivo. Seu conjunto de moleton cinza está empapado de suor. Sinto nojo da umidade e do calor que seu corpo emana. Seu grito de desespero é mudo e suas mãos tentam livrar-lhe do incômodo. 30 segundos. O filho da puta tem boa forma. Vai dar um pouco de trabalho. Já está ofegante e fraco pela falta de oxigenação. Tiro a seringa com sedativo do bolso e enterro em seu braço.
Deve ter doído para burro. Um golpe de palma da mão, seco, no queixo tira-lhe de vez a consciência. Amordaçado e drogado, está dentro do bagageiro. Carro com porta-malas grande. Fiz bem.
Dirijo até Castro, uma cidadezinha sede de uma companhia de origem holandesa. Matagais. Ainda é escuro e eu me aproveito dessa chance. Tiro o gringo do carro e o obrigo a ajoelhar-se em cima de um tapete que trouxe especialmente para a ocasião. Tenta gritar, mas não consegue. Os olhos traduzem o desespero que sua boca não enuncia. Ele mija nas calças. Porco, deve ser punido. Seguro meu saco, em gesto de indignação e aperto o gatilho. Um estampido quase surdo, acalmado por um silenciador. O projétil da pistola PT-380 atravessa-lhe o crânio e a torrente de sangue inunda o tapete. Sabia que isso ia ocorrer. Vou ao veículo e tiro a espada que estava embaixo do banco traseiro. Reflexo pós-morte. O corpo treme.
Visto luvas e uma touca ridícula. Não quero ser traído por digitais ou testes de DNA dos fios do meu cabelo. Lembro-me que estou no Brasil. Dou risada. O aço sai da bainha, com o sussurro de um atrito seco. As duas mãos se levantam e a espada corta o ar em sentido descendente. Fraco demais. Dou outro golpe e arranco a cabeça por completo. Seus olhos, de pupilas azuis, estão abertos. Envolvo o crânio em três sacos plásticos pretos e jogo-o numa caixa térmica recheada com gelo, num compartimento escondido no bagageiro. Sem sujeira. Picoto o resto do corpo em pedaços menores, em cima do tapete. Junto aos restos, espalhados nos buracos, jogo sementes de plantas nativas. “Araucaria angustilofolia”, remungo.
Tiro a roupa. Esfrego o álcool pelo corpo, acompanhado de um pedaço de pano, até que não haja mínimo sinal de sangue. Despejo o resto em cima do tapete junto com minhas vestes, luvas e touca. Jogo gasolina, do tambor extra do carro, naqueles objetos. Está frio. Peladão, por enquanto. Merda. Acendo um isqueiro metálico e o arremesso no meio do amontoado de porcarias. O fogo assobia forte. Sua fúria é minha cúmplice. Entro no carro e fecho as janelas para não permitir que meu corpo fique com cheiro de fumaça.

Araucaria angustilofolia eu digo quando ouço os gritos de prazer
Comprado, em dissonância com os gritos de amor fingido. É o sentimento de humilhação remoído dentro do coração de mulheres com o orgulho
partido. É o encontro desentrosado de dois desconhecidos.

Exagero no perfume e coloco outra roupa. Tento esquecer o que fiz. Para mim, é mais difícil matar um cachorro paralítico e sarnento. A humanidade não tem mais salvação. Está mergulhada na individualidade e cega para a razão. O imediatismo está incorporado em sua alma, encharcada de mediocridade e infâmia sem precedentes. Um bando de bostas são os humanos. Piso em cima e limpo o sapato na grama. Até uma lombriga é mais autêntica.
No caminho de volta para casa, vejo novamente os pinheiros de araucária. - Araucaria angustilofolia. - balbucio associando a imagem das duas garotas à árvore. Viagem tranqüila. Deixo a bagagem em casa e vou à videolocadora. Brigo com o dono, um imbecil movido à ignorância, por bobagem. Estragou o meu final de semana. Tenho quatro fitas para assistir. Não vou devolvê-las. Vou cagar em cima delas, tacar fogo e dançar ao redor delas, sentindo o cheiro de plástico queimado, num ritual selvagem. Louco é a mãe, filho da puta. É melhor que arrancar suas tripas e pendurar no poste.
Domingo. Final da Copa do Mundo. Sozinho, na sala da minha casa, estou embaixo de um cobertor, deitado lateralmente no sofá. Numa banqueta de madeira, deixo uma lata de cerveja. Entre os goles, a partida tem início. Algo não dá certo. Os deuses não estão do nosso lado. A bola escapule com as falhas dos peritos brasileiros e corre para os pés dos franceses. Nem de longe, assemelha-se àquele time que causava temor aos bárbaros além das fronteiras. A defesa se desencontra e Zidani, com sua carequinha de frei franciscano, mete a cabeça. Com duas escoradas, enterra em partes o sonho do pentacampeonato. O Brasil ataca, mas os franceses têm soldados bem treinados na defesa. Aponto minha PT-380 para a televisão, como se pudesse alvejar realmente o atleta, e, em seguida, encosto o cano na minha cabeça. Metal frio. Coloco a pistola em cima da mesinha. Prudência.
O técnico Mário Jorge Lobo Zagalo enfia dois atacantes. Denílson e, depois, Edmundo. Velho esclerosado. Nem com isso, um milagre reativa as pernas de Ronaldinho. Cagão. O ânimo vai se esmorecendo e os jogadores brasileiros, paulatinamente, entregam-se. Covardes e bundas moles. Logo no final, com todo mundo no ataque, os gauleses dão o tiro de misericórdia. Um chute de Petit. Não tem mais jeito, fodeu de vez. O que seria o penta brasileiro é o primeiro título dessa magnitude para os franceses. O novo herói de sua pátria, Zinadi, tem descendência argelina, denunciada pela pele morena e o nariz alongado. De cagada em cagada, o purgante surtiu efeito e o penta foi sumindo, devagarinho.
Levanto-me do sofá e, sem saber direito o motivo, pego a pistola. Esvazio a minha lata, num gole, e vou em direção a geladeira, em busca de mais bebida. Não dou muita importância para a perda do título. Nocauteio a mente. Penso em Curitiba, nas palavras de Malú e seu asco pelos franceses. Acabou a cerveja. A PT-380 fica esquecida ao lado do saco plástico com a cabeça do gringo, lá no refrigerador. Olhos azuis. Troféu. Muita gente sentiria nojo. Nem ligo. É menos nojento que comer merda direto do cu.
Vou ao armário e encontro uma garrafa de vinho branco. Abro a garrafa, despejo o líquido até a boca do copo e levanto-o para o nada, por alguns segundos. Um zumbido passa. Procuro a arma, mas não a encontro. Deve estar em algum canto, escondida num monte de jornais espalhados pela casa. Droga. Paro de procurar a semi-automática. Num solo interminável de pensamentos, quebro a apreciação ao silêncio e resmungo algo antes de derramar o vinho pela garganta, antes de cair num sono etílico: - Araucaria angustilofolia. Este é trago é para você, morena. Depois percebo como sou idiota. Não é Araucária angustilofolia, é Araucararia angustifolia. Bom, agora já foi. Deixa para lá.